De tudo o que o Congresso nos roubou (calma, explico: estou me referindo a valores como confiança, crença na representação popular, esperança), o pior talvez tenha sido a capacidade de espanto, de perplexidade. Nada de ruim vindo dali nos surpreende mais. Quando você acha que já viu tudo em matéria de absurdo, surge outro maior, que no dia seguinte será superado por um ainda pior, e assim por diante, num processo de deprimente banalização. Quando você acredita que o escândalo do castelo de R$ 25 milhões é insuperável em surrealismo, surge o caso das passagens aéreas, menos espetacular, porém mais grave porque se trata de uma prática generalizada. O que parecia extravagância isolada de um deslumbrado deputado-galã revela-se um procedimento usado por muitos de seus volegas e até por respeitáveis ministros em licença da Câmara.
Aí vem o clamor popular, a pressão do Ministério Público e, em consequência, a promessa de providências. Mas quando você pensa que haverá o cancelamento das regalias, enfim o choque de ordem moral para redimir as duas Casas, o que se vê é uma mexida para que tudo continue igual. Há um arremedo de moralização, com o corte percentual de despesas, mas os representantes do povo seguirão voando para o exterior levando suas sagradas famílias, como disse um deles, o Inocêncio Oliveira (a propósito, qual a justificativa para levá-las numa viagem supostamente de trabalho ou de interesse público ?). Pode-se alegar que com a "reforma" de agora ninguém farpa mais 54 voos como fez o entãp deputado José Múcio, nem 15, como seu colega Stephanes. Quem garante, se as brechas ficaram ?
O mais curioso é que tudo é praticado cinicamente dentro da legalidade, isto é, dentro da lei que eles mesmos fizeram. A justificativa é sempre: "eu não cometi nenhuma irregularidade". Perdida inteiramente a noção de limites, o resultado é que o legal acaba podendo ser até imoral, e daí ? A mim, o que mais choca (ainda me esforço para tanto) é o silêncio dos inocentes. Já que nem todos os deputados e senadores são fisiológicos, por que os que não concordam com essas mordomias e irregularidades, por que os eticamente corretos não protestam com vigor, não denunciam, não rompem a leniência entre pares, o espírito de corpo e não atiram corajosamente a primeira pedra ?
4 comentários:
Será que existe alguém em condições de atirar a primeira pedra ?
Ivanildo, o Zuenir foi muito feliz. Comigo houve identificação imediata qto a perda do espanto e perplexide. Confesso que não consigo parar de pensar nesse estrago em mim e garanto que já passei a estudar formas de reagir. Não gostei de ver que passei a ser assim. Desde já meu agradecimento ao Zuenir e claro, ao Blog.
Imenso meu desãnimo. Do patife do Inocêncio jamais se espere outra coisa. Contudo, cai pasmo ao ver a viúva do Jefferson Peres sacando na boca do caixa o dinheiro correspondente às passagens que seu marido não usou. Zuenir diz que perdeu a capacidade de se espantar. Acompanho-o agora ao ver o Gabeira - Santo Deus, o Gabeira - na lista dos calhordas...Que fazer, enquanto aguardamos a notícia de que o Pedro Simon deu passagem de volta ao mundo a uma filha que teve com uma freira ursulina? Talvez tocar um tango argentino.
Doutor Carlos, concordo em gênero, número e grau. Somente uma mudança: em vez do tango argentino, deveríamos tocar a marcha fúnebre de Chopin.
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