Zuenir Ventura, O Globo
Quando eu era pequeno e queria ser padre, aprendi que Jesus estava em todos os lugares discretamente, sem espalhafato, em silêncio, quase sem ser notado, a não ser pelos efeitos de seus milagres.
No sábado passado, porém, aprendi que ele pode ser introduzido em algum lugar por meio de músicas em alto volume, gritos e anátemas.
Isso se deu quando mais de mil pessoas estavam assistindo ao concerto da Orquestra de Câmera Franz Liszt, no Teatro Municipal, enquanto do lado de fora acontecia a Marcha para Jesus, que, depois de percorrer o Centro da cidade com sete trios elétricos, terminava com um show de cantores evangélicos num palco nas escadarias da Câmara de Vereadores.
Embalada por um coro de anunciados 500 mil fiéis, já que todos pareciam conhecer os sucessos, a “festa gospel” tomou conta da Cinelândia e, como não podia deixar de ser, “vazou” para dentro do teatro.
Foto: Zulmair Rocha / UOL
O ruído invasivo, perceptível em alguns pontos mais do que em outros, interferia num delicado concerto de violinos, violas, violoncelos e contrabaixo, com a participação especial do franco-suíço Emmanuel Pahud, um dos maiores flautistas da atualidade.
O som que saía de sua flauta de ouro — é de ouro não só por causa do material de que é feita, mas pelos acordes que emite — conduzia Bach, Vivaldi ou Mozart a uma dimensão celestial, com licença pelo uso do termo.
Nada contra a marcha, um espetáculo alegre e festivo, embora eu preferisse que o apresentador fosse menos belicoso e obscurantista. Não precisava amaldiçoar tanto e entregar a Satanás os que não comungam da mesma ira contra homossexualismo, casamento gay e aborto (sobrou até para a presidente Dilma).
Mas, de qualquer maneira, a culpa pela duplicidade de eventos conflitantes no mesmo lugar não é dos evangélicos, e sim de quem autorizou a realização simultânea, sem antes consultar a programação do Municipal.
Para não parecer privilégio elitista, pode-se argumentar que o espaço em que o concerto foi realizado criou uma tradição, pois abriga há mais de cem anos esse tipo de manifestação cultural, enquanto a marcha tinha à sua disposição outros lugares até mais apropriados, como Sambódromo, Aterro e o Parque de Madureira, já que cerca de 300 ônibus trouxeram público da Zona Norte, subúrbios e Baixada Fluminense.
Afinal, democracia é quando a vontade da maioria respeita o direito das minorias.
Zuenir Ventura é jornalista.