BRASÍLIA- Indignado com o que afirma ser uma sórdida ação orquestrada para enfraquecer o Supremo, levar o tribunal para a vala comum, fragilizar a instituição e estabelecer a nulidade da Corte, o ministro Gilmar Mendes afirmou nesta terça-feira, em entrevista no seu gabinete no início da noite, que o Brasil não é a Venezuela de Chávez, onde o mandatário, quando contrariado, mandou até prender juiz. Gilmar acredita que por trás dessa estratégia está a tentativa de empurrar o julgamento do mensalão para pegar o STF num momento de transição, com três juízes mais jovens, recém-nomeados, dois dos mais experientes para sair, uma presidência em caráter tampão. Gilmar, que afirma ter ótima relação pessoal com Lula, conta que se surpreendeu com a abordagem recente do ex-presidente na casa do ex-ministro Nelson Jobim. Gilmar afirma que há estresse em torno do julgamento do mensalão e diz que os envolvidos estão fazendo com que o julgamento já esteja em curso. Ironicamente, diz, as ações para abortar o julgamento estão tendo efeito de precipitá-lo.
O GLOBO: Como foi a conversa com o presidente Lula?
GILMAR MENDES: Começou de forma absolutamente normal. Aí eu percebi que ele entrava insistentemente com tema da CPMI, dizendo do controle, do poder que tinha. Na terceira ou quarta vez que ele falou, eu senti-me na obrigação de dizer pra ele: “Eu não tenho nenhum temor de CPMI, eu não tenho nada com o Demóstenes”.
Isso soou a ele como provocação?
GILMAR: Isso. A reação dele foi voltar para a cadeira, tomou um susto. E aí ele disse: “E a viagem a Berlim? Não tem essa história da viagem a Berlim?” Aí eu percebi que tinha uma intriga no ar e fiz questão de esclarecer.
Antes disso ele tinha mencionado o mensalão?
GILMAR: É. Aqui ocorreu uma conversa normal. Ele disse que não achava conveniente o julgamento e eu disse que não havia como o tribunal não julgar neste ano. Visões diferentes e sinceras. É natural que ele possa ter uma avaliação, um interesse de momento de julgamento.
Isso é indício de que o presidente Lula não se desprendeu do cargo?
GILMAR: Não tenho condições de avaliar. Posso dizer é que ele é um ente político, vive isso 24 horas. E pode ser que ele esteja muito pressionado por quem está interessado no julgamento.
Na substituição de dois ministros, acha que as nomeações podem atender a um critério ideológico?
GILMAR: É uma pressão que pode ocorrer sobre o governo. Toda minha defesa em relação ao julgamento ainda este semestre diz respeito ao tempo já adequado de tramitação desse processo. O presidente Ayres Britto tem falado que o processo está maduro. Por outro lado, a demora leva à ausência desses dois ministros que participaram do recebimento da denúncia e conhecem o processo, que leva à recomposição do tribunal sob essa forte tensão e pressão, o que pode ser altamente inconveniente para uma corte desse tipo, que cumpre papel de moderação.
A partir da publicação da conversa do presidente Lula com o senhor, os ministros do STF estariam pressionados a condenar os réus, para não parecer que estão a serviço de Lula?
GILMAR: Não deve ser isso. O tribunal tem credibilidade suficiente para julgar com independência (...) O que me pareceu realmente heterodoxo, atípico, foi essa insistência na CPMI e na tentativa de me vincular a algo irregular. E de forma desinformada.
Quem está articulando o adiamento do mensalão dá um tiro no pé?
GILMAR: Acho que sim. E talvez não reparar que o Brasil não é a Venezuela de Chávez... ele mandou até prender juiz. Um diferencial do Brasil é ter instituições estáveis e fortes. Veja a importância do tribunal em certos momentos. A gente poderia citar várias. O caso das ações policialescas é o exemplo mais evidente. A ação firme do tribunal é que libertou o governo do torniquete da polícia. Se olharmos a crise dos jogos, dos bingos, era um quadro de corrupção que envolvia o governo. E foi o Supremo que começou a declarar a inconstitucionalidade das leis estaduais e inclusive estabeleceu a súmula. Eu fui o propositor da súmula dos bingos.
Depois que o ministro Jobim o desmentiu, o senhor conversou com ele?
GILMAR: Sim. O Jobim disse que o relato era falso. Eu disse: “Não, o relato não é falso”. A “Veja” compôs aquilo como uma colcha de retalhos, a partir de informações de várias pessoas, depois me procuraram. Óbvio que ela tem a interpretação. O fato na essência ocorreu. Não tenho histórico de mentira.
O julgamento já está em curso?
GILMAR: Sim, de certa forma. Por ironia do destino, talvez essas tentativas de abortar o julgamento ou de retardá-lo acabou por precipitá-lo, ou torná-lo inevitável.
O momento é de crise?
GILMAR: Está delicado. O país tem instituições fortes, isso nos permite resistir, avançar.
Tem uma ação deliberada de tumultuar processos em curso?
GILMAR: Ah, sim.
Existe fixação da figura do senhor?
GILMAR: Isso que é sintomático. Ficaram plantando notícias.
Qual o motivo disso?
GILMAR: Tenho a impressão de que uma das razões deve ser a tentativa de nulificar as iniciativas do tribunal em relação ao julgamento desse caso.
Mas por que o senhor?
GILMAR: Não sei. Eu vinha defendendo isso de forma muito enfática (o julgamento do mensalão o quanto antes). Desde o ano passado venho defendendo isso. O tribunal está passando por um momento muito complicado. Três juízes mais jovens, recém-nomeados, dois dos mais experientes para sair, uma presidência em caráter tampão. Isso enfraquece, debilita a liderança. Já é um poder em caráter descendente.
Um tribunal com ministros mais recentes é mais fraco que um com ministros mais experientes?
GILMAR: Não é isso. Mas os ministros mais recentes obviamente ainda não têm a cultura do tribunal, tanto é que participam pouco do debate público, naturalmente.
Dizem que os réus do mensalão querem adiar o julgamento para depois das substituições.
GILMAR: Esse é um ponto de ainda maior enfraquecimento do tribunal. Sempre que surge nova nomeação sempre vêm essas discussões acerca de compromissos, que tipo de compromissos teria aceito. Se tivermos esse julgamento, além do risco de prescrição no ano que vem, vamos trazer para esses colegas e o tribunal esta sobrecarga de suspeita.
Haverá suspeita se a indicação deles foi pautada pelo julgamento?
GILMAR: Vai abrir uma discussão desse tipo, o que é altamente inconveniente nesse contexto.
O voto do senhor na época da denúncia não foi dos mais fortes...
GILMAR: Não. É uma surpresa. Por que esse ataque a mim? Em matéria criminal, me enquadro entre os mais liberais. Inclusive arquei com o ônus de ser relator do processo do Palocci, com as críticas que vieram, fui contra o indiciamento do Mercadante, discuti fortemente o recebimento da denúncia do Genoino lá em Minas. Ninguém precisa me pedir cautela em termos de processo criminal. Combato o populismo judicial, especialmente esse em processos criminais, denuncio isso.
Todas as figuras que o senhor citou são petistas proeminentes. Por que querem atacar o senhor agora?
GILMAR: Desde o início desse caso há uma sequência de boatos, valendo-se inclusive desse poder perverso, essa associação de vazamentos, Polícia Federal, acesso de CPI. Como fizeram com o (procurador-geral da República, Roberto) Gurgel, de certa forma.
Um ex-presidente empenhado em pressionar o STF não mostra alto grau de desespero com a possibilidade de condenação no mensalão?
GILMAR: É difícil classificar. A minha indignação vem de que o próprio presidente poderia estar envolvido na divulgação de boatos. E a partir de desinformação, esse que é o problema.
Ele pode ter sido usado?
GILMAR: Sim, a sobrecarga... Ele não está tendo tempo de trabalhar essas questões, está tratando da saúde. Alguém está levando esse tipo de informação. Fui a Berlim em viagem oficial. Por conta do STF. Pra que ficar cultivando esse tipo de mito? São historietas irresponsáveis. Qualquer agente administrativo saberia esclarecer isso.
Esses ataques não atingem o STF?
GILMAR: Claro, evidente. O intuito, obviamente, não é só me atingir, é afetar a própria instituição, trazê-la para essa vala comum.