Personagem anarquista que luta contra governo totalitário, popularizada no filme ‘V de vingança’, vira adereço usado em protestos no mundo inteiro
RIO — Ele está em toda parte — às vezes no mesmo dia. E protesta contra tudo e por tudo, em diversas línguas. Na metrópole turca Istambul, enfrenta com paus e pedras a polícia do premier Recep Tayyip Erdogan; na capital salvadorenha, São Salvador, participa da marcha do Dia do Trabalho; no centro financeiro alemão, Frankfurt, ergue-se contra a crise econômica; no Rio e São Paulo, grita contra o alto preço das tarifas de ônibus, a corrupção, os péssimos serviços públicos... Nos últimos anos, não há lugar que — palco de alguma confusão ou reivindicação em praça pública — não registre a presença de pelo menos meia dúzia de caras brancas com sobrancelhas, bigode e cavanhaque preto bem delineados. A marca registrada do manifestante globalizado, no entanto, não podia ser menos moderna. Embora popularizada pelo protagonista do filme “V de vingança”, de 2005, a máscara que identifica descontentes de todas as latitudes tem sua origem num personagem do início do século XVII pouco conhecido fora dos países de língua inglesa: Guy Fawkes, um dos integrantes da Conspiração da Pólvora de 1605.
Antes de tomar as ruas das cidades do planeta nos dias atuais, Fawkes fazia aparições nos livros de História da Inglaterra como o homem que tramou explodir o Parlamento em Londres, com o rei Jaime I, ministros, parlamentares e toda a família real dentro, na abertura da sessão legislativa na Câmara dos Lordes em 5 de novembro de 1605. Preso, torturado e executado, ele se tornou uma espécie de vilão popular por força da Lei do 5 de Novembro — aprovada em 1606 por aliviados parlamentares após a descoberta da conspiração — que instituía a data como celebração do dia em que o Parlamento foi salvo da destruição. Durante séculos, acenderam-se fogueiras, e Fawkes foi malhado como Judas a cada 5 de novembro.
— Os conspiradores queriam testar se uma nação do século XVII podia sobreviver à destruição da classe política, com todos os seus símbolos e monumentos — disse ao GLOBO, da Inglaterra, o historiador Mark Nicholls, do St. John’s College, da Universidade de Cambridge e autor do livro “Investigando a Conspiração da Pólvora”. — Daquele dia até hoje, o glamour tenebroso do caso tem chocado as pessoas e atraído a atenção delas em igual medida.
Nome virou vocábulo da língua
A lei caiu em 1859, mas a tradição, exportada para onde quer que tremulasse uma bandeira inglesa, continuou. Com o passar do tempo, a conotação negativa ligada ao personagem foi se perdendo, a ponto de seu nome — antes sinônimo de vilania — ser incorporado ao vocabulário cotidiano dos americanos da forma mais casual possível: guy, no inglês dos Estados Unidos, virou algo como o nosso “cara”.
A fama fora do mundo de língua inglesa, porém, só ocorreu em 2005, quando chegou às telas o filme “V de vingança”, uma transposição para o cinema de uma graphic novel do consagrado autor britânico Alan Moore escrita no início da década de 1980. Na história, um mascarado misterioso luta para destruir um Estado totalitário fascista estabelecido no rastro de devastadores ataques terroristas no Reino Unido. A máscara que esconde o herói, claro, é um rosto estilizado de Guy Fawkes. No rastro do filme, o personagem V ganhou o planeta como ícone anarquista, sendo adotado, entre outros, pelo grupo ativista de hackers Anonymous. Hay protesta, lá está ele.
— Fawkes enfrentou sua horrível morte com coragem. Seus objetivos podem estar bem distantes das preocupações dos britânicos modernos, mas não é difícil enxergar por que pessoas que olham para a segurança do passado distante o veem como um homem de princípios com a coragem de arriscar a vida por uma causa, e não como um terrorista — avalia o historiador Mark Nicholls.
Esses princípios estiveram entre os motivos do músico catarinense Giulio Giacomazzi, de 34 anos, para aproveitar uma escala em Istambul, na volta de sua viagem à Tailândia, e participar dos protestos em plena revolta dos turcos contra um premier tido como autoritário por muitos. Máscara de Guy Fawkes no rosto, comprada num camelô, lá foi Giulio para a Praça Taksim, epicentro da revolta.
— Falaram no albergue que era contra um governo conservador que censura tudo — justificou ele, já de volta a Florianópolis. — Eu conhecia a máscara por causa do filme e decidi usá-la porque, além de preservar o anonimato, ela tem um sorriso irônico que dá um tom de sátira ao que está acontecendo, expondo os governantes.
Aqui no Brasil, desde a semana passada os governantes — das grandes metrópoles aos municípios do interior — passaram a conhecer o poder por trás desse sorriso irônico.
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