quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

As Gralhas Enfurecidas (034)

Três últimos capítulos publicados:
031 - em 11/01
032 - em 16/01
033 - em 18/01
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O Relatório Reservado parecia uma bomba, prestes a explodir, sobre a mesa de Charles Spencer. A nota de apenas cinco linhas informava que o Diretor de Marketing da GLS Seguros tinha se afastado do cargo, por motivo de doença e que o Presidente ainda não indicara ao Conselho de Administração o nome do substituto.
Charles Spencer já mandara chamar Paulo César à sua sala e repetia a ordem para a secretária a cada dois minutos. A resposta era a mesma: o Paulo César ainda não chegara à agência e ninguém respondia ao telefone em sua casa.
Charles Spencer, nada britanicamente, aos berros, perguntava onde se “meteu esse veado” e mandou ligar para a casa de Floriano, o revisor do atraso com zê e, quem, Charles desconfiava, era um dos casos de Paulo César. A secretária, muito assustada, dizia que o Floriano já estava na agência e não sabia informar nada sobre o Diretor de Artes. Perguntou se deveria chamá-lo.
Charles Spencer disse que não tinha nada a tratar com Floriano e mandou chamar Teresa.
Ele já havia tentado falar com Mauro Cardoso, mas a telefonista informara que houvera um problema na mesa telefônica e que não era possível transferir qualquer ligação para o Departamento de Marketing e acrescentara que o “senhor pode deixar o nome e o telefone que alguém retornará a ligação tão logo quanto possível”. Charles fingiu que acreditou. Ele tentara também falar com a residência de Mauro, mas ninguém atendeu.
Teresa não recebia o Relatório Reservado, mas tinha lido na página econômica a notícia do afastamento de Mauro Cardoso, e entrou na sala de Charles Spencer com o jornal.
O Partner in Charge tentou parecer calmo, ofereceu café a Teresa e perguntou se ela sabia do paradeiro de Paulo César.
- A última vez que eu falei com ele foi anteontem. Acho que ele não veio trabalhar ontem. Pelo menos, não o vi. Você já falou com a secretária dele ? Charles não respondeu, considerando a pergunta absolutamente idiota e este pensamento ficou transparente em seus gestos, outra vez demonstrando impaciência. Teresa percebeu e tratou logo de mostrar eficiência:
- Eu sei o que você vai me pedir e já fiz. Liguei para o Luiz Felipe mas ele não pode atender, porque está numa reunião importante. Pelo menos, foi o que a secretária falou...
- Tente outra vez. Daqui mesmo.
Teresa tentou de novo e a resposta foi a mesma. Charles pediu que ela ligasse para o celular. O telefone chamado estava desligado ou fora de área.
- Teresa, por favor, continue tentando. Eu quero saber como está o nosso projeto no Comitê Executivo, qual a conseqüência dessa saída do Mauro, que história é essa de doença... Quando você conseguir falar com o Luiz Felipe, por favor, avise-me imediatamente. Ligue para o meu celular, porque eu preciso sair agora.
Teresa achou-o muito transtornado. Transtornado demais. Voltou a sua sala e mandou uma mensagem para Luiz Felipe pela Internet.

O Dr. Plácido Rezende era o mais velho e o mais antigo executivo da Companhia. Tinha setenta e um anos de idade, cinqüenta na empresa e já se aposentara, mas por insistência dos acionistas, com o apoio unânime da Diretoria, participava sempre das reuniões.
Como Diretor Jurídico, um cargo, agora, apenas honorário, não tinha assuntos a relatar, mas suas opiniões, que somente emitia quando era solicitado, eram sempre acatadas e muito respeitadas.
Ele estava saindo de sua sala para a reunião extraordinária convocada pelo Presidente, na qual também estariam presentes dois membros do Conselho de Administração, quando a secretária o alcançou no corredor, dizendo que havia uma ligação telefônica.
Plácido Rezende, que se orgulhava de atender a todas as ligações telefônicas, sem nunca mandar dizer que não estava, ou que estava em reunião, voltou e tirou o fone do gancho, sem sequer perguntar à secretária quem estava ligando.
- Pronto, quem está falando ?
- Dr. Plácido, não interessa quem está falando. Eu só quero ajudar. Presta atenção: o picareta do Mauro é muito mais picareta do que vocês estão pensando. Além de ter metido a mão na compra dos brindes e nos contratos com a televisão, ele levou mais de cem mil dólares de comissão na compra do imóvel de vocês em São Paulo. É um picaretão. Boa sorte, Dr. Plácido.
Plácido desligou, pegou o elevador e foi para a reunião muito satisfeito, dizendo que, depois de alguns anos, finalmente, tinha algo interessante para relatar.

A cinco quilômetros da Matriz da GLS, Ernesto começava sua reunião.
- Vamos ser muito objetivos. Os jornais de hoje publicam uma pequena nota informando que o Mauro Cardoso saiu da GLS, por motivos de doença. Não foi doença.
Explicou o que ouvira do Presidente, sem apresentar grandes detalhes e foi muito cauteloso ao afirmar que não sabia, nem queria saber, se Mauro estava, ou não, envolvido diretamente no escândalo. Fora despedido, sim, por ser o responsável pelo Departamento. Pronto. E ponto.
- O Presidente quer superar o episódio o mais depressa possível, em termos de repercussão no mercado. Ele sabe que ninguém vai acreditar na história da doença, mas entende que isto não tem importância. O importante é que não fique qualquer sensação de que a GLS está paralisada pelo acontecimento. Neste exato momento está havendo uma reunião extraordinária da Diretoria, de onde sairá o nome do novo Diretor de Marketing.
Guilherme não conseguiu não interromper e disse que na noite anterior estivera com a mulher no consultório médico, e lera numa revista americana que mais de setenta e cinco por cento dos problemas de desvio de dinheiro nas empresas aconteciam nos Departamentos de Marketing e que deste percentual, mais de oitenta e três por cento no segmento de compras de brindes para os clientes.
Pedro Rosenbaum comentou que a revista, como todas que ficavam nos consultórios médicos, devia ser muito antiga, porque esta informação não era mais verdadeira. As fraudes eletrônicas superavam, em freqüência e em quantidade de dinheiro envolvido, todas as demais.
Rodrigo perguntou a Guilherme se o médico a que ele estava se referindo era um psiquiatra, porque ele parecia mais louco do que nunca...
Guilherme pediu desculpas a Ernesto por ter interrompido, e informou que ele acompanhara a mulher ao médico, não era psiquiatra, era ginecologista e ele tinha o prazer muito grande de informar que Celina, sua esposa, estava grávida.
Rodrigo perguntou se ele desconfiava de alguém...e o BB lindo disse “que horror!”.
Ernesto começou a perder a paciência, mas controlou-se e sentiu-se até feliz.
Com exceção dele e de Luiz Felipe, os executivos, os executivos, seus principais colaboradores, eram muito jovens e pareciam não estar dando muita importância ao que estava ocorrendo na empresa, o que, concluiu, era um sinal de maturidade, um indício de que seguiriam em frente, independentemente de qualquer acidente de percurso.
Olhou para o organograma a sua frente e teve a absoluta certeza de que tinha sido uma boa decisão.
- Vamos deixar para discutir a paternidade do filho do Guilherme na hora do almoço, quando teremos outras coisas para comemorar...
Levantou-se, cumprimentou Guilherme, no que foi seguido pelos demais. Luiz Felipe abraçou-o e disse que ele ficasse feliz, de qualquer maneira, “porque, Guilherme, pai é quem cria”. O BB maravilha disse o segundo “que horror!” da manhã e a reunião prosseguiu.
- Muito bem... Os cães latem e a caravana passa.
- Desculpe, Ernesto, os cães não latem. Eles ladram...
- Os meus cães latem, Guilherme... Vamos em frente: como eu dizia, o Presidente insistiu nesse ponto, ou seja, não haverá nenhuma interrupção nos projetos em andamento. Por isso, as nossas novas plataformas serão lançadas como previsto no cronograma inicial, ressalvados os atrasos conseqüentes da incompetência de vocês...
Ernesto segurou a folha de papel que Luiz Felipe vira sobre a mesa do ex-Diretor de Marketing...
- O primeiro quadradinho aqui em cima já era... Sai Mauro e entra sei lá quem... Eu, por enquanto, fico neste mesmo quadradinho, mas com uma nova denominação. Passo a ser o Diretor-Superintendente e pretendo continuar por muito tempo, a não ser que a Auditoria, que começa o trabalho aqui, amanhã, descubra que eu recebi suborno dos prestadores...
Agora, estavam tensos, não riram e não houve piadas. Aguardavam as novas funções.
- Guilherme, você permanece como Superintendente da Plataforma de Assistência 24 Horas e, por causa da analogia com os serviços que serão prestados pela Plataforma de Aviso de Sinistros, fica também com a segunda plataforma. Parabéns, você é o Superintendente de duas plataformas. Não sei se é uma tendência mundial, mas é a nossa tendência.
Guilherme descontraiu, estava nitidamente feliz, agradeceu e, referindo-se à gravidez da mulher, disse que eram duas ótimas notícias em menos de 24 horas.
Luiz Felipe pensou em dizer que em nenhum dos dois acontecimentos ele tivera qualquer participação, mas decidiu adiar o comentário para a hora do almoço...
Ernesto prosseguiu:
- Rodrigo, você sabe que quando eu tive que escolher um Superintendente para a Assistência 24 Horas, fiquei numa dúvida muito grande entre você e o Guilherme. Conversei com o Mauro, analisamos com o maior critério possível e o Guilherme foi escolhido por causa da idade. Agora, chegou a sua vez. Você será o Superintendente das outras duas plataformas. Parabéns.
Novos cumprimentos e... novas gozações.
Pedro Rosenbaum, olhando para os cento e vinte quilos de Rodrigo, abraçou-o e disse que, finalmente, a GLS Seguros tinha um Superintendente de peso. Rodrigo respondeu que Pedro Rosenbaum nunca seria nada de peso, por causa dos legumes, sem batata.
O BB lindo não quis dizer o terceiro “que horror” da manhã e ficou calado.
- Guilherme e Rodrigo, depois, preparem uma lista com os nomes dos melhores técnicos, não necessariamente os mais antigos, para decidirmos quem ocupará as duas Gerências. Com calma, depois...
Olhou para Luiz Felipe.
- Agora, você.
Luiz Felipe olhou para a porta, rezando para que a secretária não entrasse e interrompesse com um novo recado. Esperava firmemente que não houvesse nenhuma ligação telefônica, nenhum chamado do Presidente ou de quem quer que fosse. E que o núcleo neurótico não tivesse conseguido abrir a porta do banheiro, onde Luiz Felipe o prendera naquela manhã.
- Vou contar para vocês, que são novos na empresa, pelo menos em comparação comigo e com o Luiz Felipe... nós estamos aqui há mais de quinze anos... o que aconteceu há alguns anos. O Luiz Felipe tinha sido mais ou menos despedido da empresa, porque a Gerência dele foi extinta. Mas, como o Diretor gostava muito do trabalho dele, e não queria que a GLS o perdesse, conseguiu que ele ficasse no Departamento de Marketing.
Luiz Felipe percebeu onde Ernesto ia chegar e começou a se sentir emocionado.
Ernesto continuou:
- Quando começaram os entendimentos com a Seguradora francesa para a criação da Assistência 24 Horas, ele fez parte do grupo de trabalho, porque falava francês e sabia redigir como ninguém, o que é verdade até hoje... Bem, ele fez um ótimo trabalho, foi elogiado por todos, tanto pela GLS, quanto pelos franceses, e era o candidato natural para ser o Diretor de Operações da GLS Assistência 24 Horas. Aí, como dizia minha mãe, Deus tinha outros planos e ele enfartou. Ninguém achou que ele fosse morrer... mas ficou mais de um mês fora e, quando voltou, estava deprimido. Em suma, perdeu a oportunidade. Eu, que tinha trabalhado antes com o Mauro, fui o escolhido.
Fez uma pausa e olhou, de novo, para Luiz Felipe.
- Meus amigos, o que quero dizer é que não sei se eu sou um ótimo profissional, ou apenas bom..., não sei se fiz um ótimo trabalho aqui, ou se apenas um trabalho razoável... mas o que sei, com certeza, é que, se o Luiz Felipe estivesse no meu lugar, teria feito um trabalho tão bom quanto o meu, ou até melhor. Eu fico muito feliz em comunicar a vocês que ele foi promovido a Diretor de Operações da GLS Assistência 24 Horas.
E, muito rapidamente, para quebrar o clima solene demais para seu gosto, acrescentou:
- Mas, não se esqueça. Eu sou o Diretor-Superintendente, e, portanto, continuo seu chefe... vou para a rua vender novos serviços e você fica aqui, comandando este bando de meninos recém saídos das fraldas, tentando fazer este jardim de infância funcionar...
Houve muitos cumprimentos e nenhuma brincadeira.
O BB bonito estava chorando. Mas não era só ele. Na garagem do prédio, Ernesto disse que Luiz Felipe ia com ele porque em seu carro importado só entravam Diretores... Os outros cinco se espremeram no Fiat de Pedro Rosenbaum e foram para o restaurante de todos os dias.
Luiz Felipe estava outra vez namorando o painel do Audi de Ernesto e já estava pensando que carro compraria, graças às facilidades de financiamento que a GLS oferecia aos Diretores. Talvez um BMW, como o do pai de Teresa, talvez um Volvo ou, então, quem sabe, um nacional mesmo, porque a prestação seria menor. Estava sonhando, mas muito tranqüilo porque era um sonho-verdade.
Emocionara-se muito e chegou a temer por um novo enfarte, mas achou que seria uma tremenda maldade do destino tirar-lhe, pela segunda vez, e pelo mesmo motivo, a chance de ser Diretor da GLS Seguros. Não, não aconteceria.
O núcleo neurótico, que ficara preso no banheiro de seu apartamento, ele esperava, tinha se sentado no vaso sanitário, escorregara, afundara e estava definitivamente morto no fundo do mar, sem qualquer possibilidade de ressurreição.
Ernesto percebeu o silêncio e perguntou se ele estava bem, e se a nomeação era a que ele esperava.
- Não, Ernesto, para ser franco, não. Achava que eu ia ter um lugar de destaque, alguma coisa acima dos meninos, uma Superintendência Geral, sei lá, mas não uma Diretoria. Fico-lhe muito grato.
Ernesto, como sempre, lutava desesperadamente para fugir de qualquer situação que o emocionasse. Ele já se expusera muito no discurso com o qual tinha comunicado a nomeação de Luiz Felipe e não queria repetir a cena.
- Luiz Felipe, ficar muito grato é cousa de veado...
Estavam chegando ao restaurante. Guilherme, pelo celular, estava perguntando se a empresa pagaria o almoço... Ernesto disse que o almoço seria por conta dos novos promovidos.
- Luiz Felipe, você me contou que o Mauro tinha falado com sobre a nomeação do Guilherme e do Rodrigo. Ele não falou nada sobre você ?
Luiz Felipe disse que já tinha contado em detalhes toda a reunião com Mauro, quando se encontraram no bar, na noite passada, mas repetiu o relato, confirmando que achava mesmo que o Mauro tinha, veladamente, condicionado sua promoção à sua aprovação do projeto de divulgação.
- Isto não tem mais nenhuma importância, agora. Considerando-se que foi ele quem trouxe essa agência para a GLS, certamente o Comitê Executivo vai suspender tudo até apurar direitinho o que pode ter ocorrido também nessa concorrência. De repente, Luiz Felipe, o Mauro também levou dinheiro da agência. A gente nunca sabe... Quando eu estive na casa dele, naquele fim de semana em Itaipava, notei que ele estava muito aflito sobre o contrato com a agência, dizendo que o Comitê Executivo estava demorando para aprovar.
Luiz Felipe lembrou-se do jantar na noite anterior. Agora, ainda não tinham chegado ao restaurante, ainda não tinham começado a beber...
- Ernesto, é a segunda vez que você fala em Itaipava. Da primeira vez, ontem, no bar, achei que você estava bêbado, ou eu estava, ou nós dois estávamos bêbados... A casa do Mauro não é em Angra ?
- Era. Ele vendeu há mais de um ano...
- Vendeu ?
- Você não lembra ? Ele falou que a mulher dele não gostava de mar e preferia a montanha. Nós estávamos juntos.
- Não lembro. Você sabe para quem ele vendeu ?
- Sei lá. Por que ? Você acha que com os novos honorários de Diretor ia poder comprar aquela mansão ?
Luiz Felipe riu. E, sem saber muito bem porque, sentiu-se feliz com a informação.
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Capítulo 035 - Prevista a publicação para 25/01

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