Ao desfilar no grupo especial das escolas carnavalescas de São Paulo, a Águia de Ouro foi muito além da apoteose, carnavalizou a tragédia em nome da paz e do amor. Um dos seus carros evocou Vlado Herzog, assassinado pelo terror de Estado na masmorra do DOI-Codi dia 25 de outubro de 1975.
Em uma caixa de vidro erguida no topo do carro entre flores gigantes, mostrou um homem aparentemente enforcado e abandonado na mesma, exata posição em que uma foto oficial exibiu Vlado na pretensão de afirmar seu suicídio.
De vez em quando, no auge do batuque, a personagem levanta-se e cai no samba. Eufórica e competente. A história deveria ser conhecida até nos detalhes miúdos, mas as circunstâncias me induzem à recordação.
Vlado chefiava o jornalismo da TV Cultura e, juntamente com seus comandados e alguns amigos, era há tempo apontado como subversivo por um certo Claudio Marques, torpe figura a destilar fel nas páginas de um jornaleco de propaganda chamado Shopping News.
No espaço de uma semana, o grupo todo foi preso sob a acusação de compor uma célula comunista. Uma sombra desliza sorrateira no entrecho, estranho intermediário entre os agentes da repressão e o jornalista, avalista da entrega espontânea deste na manhã daquele sábado 25 de outubro.
Torturado, Vlado não resiste, morre antes das 5 da tarde. Apoiada pela imagem forjada que inspira a encenação da Águia de Ouro, a lembrar um títere atirado ao bastidor, o comando do II Exército divulgou a versão do suicídio.
Título do enredo da escola: Tropicália da Paz e do Amor. Contou com a participação de destaques graúdos: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Wanderléa, Cauby Peixoto, Fernando Meirelles. Um conjunto de dúvidas me assalta na tentativa de interpretar o evento.
Palpita nele algo similar à glorificação do esquecimento?
A falta de memória é traço forte da personalidade nacional, mas no caso a impressão se desfaz diante da evidência da lembrança, embora distorcida. Vlado não é um suicida, como a plateia do Sambódromo quem sabe tenha sido levada a imaginar, ele é a vítima de algozes fardados, dos seus mandantes pluriestrelados e da ditadura invocada e provocada pelos vetustos donos do poder.
Abalo-me a crer que aquele carro, aquele específico ao menos, tencione celebrar a índole nacional. Se não ignora os fatos, condena ao oblívio seu lado feroz.
Agora pergunto aos meus estupefatos botões a quem aproveitam tanta paz e tanto amor. De saída, meus constantes interlocutores recomendam prudência.
2 comentários:
É evidente que as marolas não interessam ao governo. O PT navega em mar de Almirante pra que mudar de rumo?
Tem coisas que não dão samba...
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