sexta-feira, 31 de outubro de 2008

As Gralhas Enfurecidas (008)

E agora, ali estava a sua frente, tomando seu terceiro uísque, o eterno namorado, mais complicado do que nunca, choramingando como uma criança, pedindo-lhe aconchego que ela nem como psicóloga, nem como amiga, sabia ou queria dar.
A TV, no bar, exibia um especial de Dolores Duran e Luísa estava pensando se deveria contar para Luiz Felipe que “eu desconfio que o nosso caso está na hora de acabar”.
Devidamente empossado na Segex, Luiz Felipe teve a vã ilusão de que, como Diretor, teria mais condições de alterar o rumo dos acontecimentos. Vã ilusão, mesmo, porque a Companhia continuava sendo a mesma, ou seja, uma vendedora de bilhetes de seguros obrigatórios, cuja receita representava mais de oitenta por cento de todo o faturamento.
A fraude também continuava: para não ceder o percentual de prêmios ao Instituto de Resseguros sobre a venda de todos os bilhetes, eram emitidas várias séries de um mesmo número, e o pagamento percentual era feito somente sobre uma série.
Os sinistros só eram pagos, e com um enorme atraso, quando a Superintendência de Seguros, órgão do governo, responsável pela fiscalização das operações de seguros no país, era acionada pelo infeliz beneficiário do seguro. Como poucos sabiam da existência da tal Superintendência, a maior parte das reclamações acabava não sendo atendida, e a negativa era baseada em estapafúrdias alegações pseudo-jurídicas, brilhantemente redigidas pelo chamado DSO, o Departamento de Seguros Obrigatórios.
O DSO, dirigido por um advogado, possuía treze empregados, entre os quais cinco universitários da Faculdade de Direito, e funcionava quase secretamente, numa sala cuja porta estava permanentemente trancada e à qual só tinham acesso algumas pessoas, certamente as comprometidas com o esquema. Era a caixa preta da empresa, e não seria aberta, nem mesmo em caso de grandes tragédias.
Nos meses que se seguiram, Eduardo Ferreira de Alcântara saiu das colunas sociais e freqüentou por diversos dias a página policial. Estava envolvido em um antigo processo numa empresa estatal, referente a financiamento para compra de navios, processo que os interesses políticos da época resolveram reabrir. Ele lambuzou os dedos e foi fotografado na Polícia Federal, mas não colocou o retrato na parede do quarto andar.
Falou-se e escreveu-se muito sobre ele durante as duas semanas seguintes ao seu indiciamento, mas na terceira semana a crônica social mais lida da cidade informou que Eduardo Ferreira de Alcântara viajara para Londres, onde, como em todos os anos, participaria do Torneio de pólo com o Príncipe Charles...
É verdade que houve um processo de intervenção da Superintendência de Seguros. Mas o laudo pericial, emitido em tempo recorde, vinte e seis dias depois, concluiu que não havia qualquer irregularidade significativa nas operações da Companhia.
Luiz Felipe estava em casa, pensando se ligava ou não para Luísa com quem não se encontrava há algum tempo. Ela fora muito sincera, dizendo que ele continuava muito chato, reclamando, choramingando demais. Disse também que queria dar um tempo..., repensar a relação... e, naturalmente, ficara muito aborrecida quando Luiz Felipe, como fazia sempre, falou que era conversa de psicólogo.
Ele estava se sentindo outra vez totalmente perdido, assustado, apavorado mesmo e concluiu que seria um péssimo momento para se reaproximar de Luísa. A reaproximação, nas condições em que se encontrava só iria provocar um novo afastamento, certamente mais sério e provavelmente definitivo. Estava exagerando ?
Talvez, mas foi esta a opinião emitida por seu núcleo neurótico.
Resolveu, então ligar para o amigo José Eduardo.
- Puxa, até que enfim... Te liguei duas vezes, deixei recado na secretária eletrônica e só agora você me retorna ?
- Não liguei a secretária, claro que eu retornaria. Mas o que você queria comigo ?
José Eduardo foi extremamente objetivo:
- Lembra do Jairo, que era gerente aqui ? Pois é, ele agora está na Superintendência de Seguros. Eu encontrei com ele e ele me disse que está rolando o maior rebu porque o novo Diretor de Controle, que é um inimigo antigo do Eduardo, foi fundo no processo da fiscalização na Segex e descobriu o que todo mundo desconfiava, quer dizer, a inspeção foi uma armação daquelas, os fiscais levaram uma nota preta para assinar aquele laudo fajuto. Parece que o decreto da intervenção sai até o final do mês.
- O Eduardo ainda está na Inglaterra... se ele estivesse aqui...
José Eduardo interrompeu-o bruscamente:
- Acorda, cara. Acorda e cai fora... vai sobrar para você e para os seus colegas de Diretoria. Vai por mim, essa notícia é quente, Luiz Felipe.
Luiz Felipe agradeceu, marcou o almoço do dia seguinte com José Eduardo, preparou uma dose de uísque e ligou a televisão. No vídeo, viu a imagem do núcleo neurótico que, atrás de sua poltrona, repetia sem parar:
- Eu não disse ? Eu não disse ? Eu não disse ?
Esta era a empresa na qual Luiz Felipe fora convidado para ser Diretor e fora empossado, em sessão solene, sem nunca ter respondido se aceitava ou não. Esta era a empresa na qual ele trabalhava, de onde tirava o salário. Esta era a empresa que ia manchar o seu currículo para sempre. Esta era a empresa que estava colocando em risco sua reputação, seu patrimônio, sua liberdade. Esta era a empresa na qual ele não poderia ficar.

Um comentário:

Anônimo disse...

Você "corta" os capítulos de uma maneira muito inteligente. Parece novela de gente grande. Já tentou transformar em roteiro para a TV ou cinema ? Estou achando isso até o momento, espero que continui assim.