Rosiska Darcy de Oliveira, O Globo
A dor não cabe nas três letras de uma palavra. A dor é indizível e só cada um conhece a sua. A dor alheia se respeita no silêncio e na compaixão.
A revolta, ela sim, comporta muitas palavras e outros tantos gestos que não devem ser poupados. Do que aconteceu em Santa Maria se deve falar à exaustão, discutir em cada sala de jantar, escola, em cada gabinete, da presidente aos prefeitos, até que se chegue às raízes da tragédia.
Não apenas procurar os responsáveis e puni-los, mas também combater os irresponsáveis, desentranhar de nossa maneira de viver comportamentos aberrantes que, tidos como normais, cedo ou tarde desembocam em desastre.
Porque o que está em causa não é só a responsabilidade específica, localizada em Santa Maria, mas a irresponsabilidade invisível, porém generalizada, que alimenta no país uma cultura assassina.
De onde vem o desprezo pela lei, a ojeriza à ordem? Por que no Brasil as leis não pegam e as normas não se cumprem? Por que achamos tanta graça na transgressão? Quando um elevador está superlotado, alguém grita: “Entra, que sempre cabe mais um!” E, no entanto, a lotação máxima está à vista de todos.
Se alguém sai em sinal de protesto, ouve o comentário: besteira. Numa mistura de estupidez e leviandade, às gargalhadas, colocamos em risco a vida uns dos outros.
O desprezo pela ordem vem do fato que ninguém teme a lei, porque acredita — e não sem fundamento — que sempre se encontrará uma maneira de contorná-la, uma propina, a influência de um amigo, o favor de um político. A história da corrupção se enreda na história da transgressão e a explica.
O divórcio entre a população e a autoridade provém de uma desconfiança ancestral de que esse jogo não é para valer. O desprezo pela política, confundida com o poder do Estado, aumenta cada dia — e, mais uma vez, com boas razões —, e não é alheio a essa confiança na impunidade.
Havia superlotação na boate em Santa Maria. Como há em tantas outras, o que não a absolve, ao contrário, anuncia novos dramas.
A função pública mal exercida, a exemplo de fiscais que não fiscalizam, deixa de ser respeitada. Quem confia na presença, presteza e preparo da polícia? Quem são esses seguranças que substituem as autoridades, essa praga de gigantes embrutecidos, de terno e gravata, saídos ninguém sabe de onde, imbuídos de uma autoridade espúria, dada por quem?
Rosiska Darcy de Oliveira é escritora
Um comentário:
O desprezo pela lei começa no seu próprio nascimento, na maternidade chamada Congresso e no cartório paquidérmico chamado Executivo.
É de conhecimento geral que as leis são propostas, discutidas (negociadas?)e aprovadas pelo Congresso e em seguida encaminhada para ratificação, promulgação e regulamentação pelo Executivo para que o Judiciário possa aplicá-las de forma ordenada.
É claro que em Pindorama a regulamentação, quando existente, leva anos até ser encaminhada ao Judiciário criando grande insegurança na aplicação destes diplomas nos tribunais.
Aos juízes restam duas alternativas a de aguardar uma regulamentação ou aplicar uma regulamentação imaginária sujeita a erros, arbitrariedades etc.
A "Menina Lei Brasileira" sem pai e sem mãe será marginalizada pela maioria da sociedade.
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