Gilberto Roque Carneiro
CMG (RM-1)
Pior é que João Cândido, um marinheiro velho, de trinta anos, não foi um amotinado naquela revolta. O motim vinha sendo urdido por marinheiros novos, vindos das novas Escolas de Aprendizes do Nordeste, mais intelectualizados e cooptados por políticos. O Marechal Hermes da Fonseca assumira há uma semana. Tinha derrotado Rui Barbosa nas urnas. Trazia de volta os militares ao poder , que haviam perdido desde a saída de Floriano Peixoto, quinze anos antes.
A Revolta dos Marinheiros em 1910 eclodiu no Encouraçado Minas Gerais, recém recebido na Inglaterra. Na véspera o Comte. Batista das Neves havia punido um marinheiro com 25 chibatadas, a pena máxima prevista em lei. Cumpria o doloroso dever dos Comtes. ao julgar um subalterno que havia navalhado no rosto um companheiro dormindo. Como os ânimos estavam exaltados, resolveu dormir a bordo após voltar de um jantar num navio estrangeiro, na bóia, com o navio fundeado na Baía da Guanabara. Dispensou seu Ajord no portaló e rumou para o Camarote, sendo tocaiado e trucidado por golpes de machado do CAV. Era cerca de meia noite. Instalou-se grande confusão a bordo, com mortos e feridos. Não era um motim de marinheiros contra oficiais. Muitos subalternos lutaram junto aos oficiais. Outros navios, também fundeados, imaginaram que a revolta política havia começado, alguns aderiram. Na verdade , adrede marcada, eclodiria quinze dias depois, como eclodiu no Batalão Naval, onde hoje está o CGCFN.
João Cândido, entrara para a Marinha em Rio Grande, pelas mãos do então CF Alexandrino de Alencar, de cuja família era cria, com quinze anos de idade. Em 1910, amigo dos Oficiais, principalmente por sua ligação com o ex-Ministro Alexandrino,que acabara de deixar o poder, foi encontrado pelos verdadeiros revoltosos, escondido nas entranhas do Minas Gerais, e forçado a entregar o manifesto da revolta aos Deputados que rumavam para o navio numa lancha. Na verdade um só deputado, Oficial da MB na Reserva, aceitou a incumbência. Esse documento, cujo original está arquivado no SDGM, escrito a mão, por gente letrada, estava pronto e tinha data posterior ao dia da entrega. Nada falava sobre castigos físicos, sim da vida dura da guarnição, rancho ruim, falta de pessoal, soldos baixos, etc A chibata, deflagradora do motim no Minas, abortando o movimento, foi o pretexto arranjado pelos políticos, para militarizá-lo e cair fora das conseqüências. Políticos debateram no Congresso, que como sabem ficava na Cinelândia, sob a hipótese de bombardeio do Centro da cidade. Os jornais divulgavam as notícias, alarmando a população. O Presidente Hermes da Fonseca fora Ajord de seu tio, Deodoro da Fonseca, quase duas décadas antes, quando assistiu à sua deposição em condições semelhantes. Tudo indica que o movimento, de maior abrangência do que foi divulgado, pretendia depô-lo. Mas provas não existem. Após o pesado bombardeio ao Batalhão Naval, comandado pelo Gen. Menna Barreto, cujo Estado-Maior ocupou o Edifício Tamandaré, da Marinha, muitos documentos foram destruídos, inclusive depoimentos colhidos nos diversos inquéritos em andamento.
Esta história toda custou a ser estudada, principalmente pela vergonhosa participação da Marinha. João Cândido, negro, analfabeto, filho de escravos, foi usado por décadas como suporte a políticos populistas e ainda está sendo. Gostou do papel glorioso que lhe atribuíram. Assim, a história de sua vida é deturpada. Declarou, no Inquérito, que era nascido na Argentina. Na verdade foi numa fazenda próxima à fronteira no Sul. Em 63, quando estávamos na Escola Naval, no navio hidrográfico Canopus, o Comte Varella e seu Imediato foram assassinados por um Marinheiro julgado e punido na véspera com a pena máxima, dez dias de prisão rigorosa, a golpes de "machados do CAV". Não acham muita coincidência? Por esta época fazia sucesso o único livro publicado sobre a dita Revolta da Chibata, em tom ideológico, por um jornalista chamado Edmar Morel, quase um incitamento à insubordinação de marinheiros. Nesta época João cândido freqüentava o Sindicato dos Metalúrgicos, a convite, para contar detalhes de sua gloriosa história. Foi nesse Sindicato que Marinheiros se abrigaram, estimulados pela inoperância do Presidente João Goulart, para desafiar os Chefes Navais e a Instituição.
O Governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, recebeu e rendeu homenagens a João Cândido, já envelhecido, mas envaidecido pelas múltiplas e periódicas homenagens em diversas situações. Considero o valor desse cidadão por ter conseguido manter essa impostura por toda a vida e até depois da morte. O Alte. Hélio Leôncio Martins, historiador naval ainda vivo, primeiro Comte. do Nael Minas Gerais, estudou a fundo a "Revolta dos Marinheiros de 1910", documentou-se e publicou seu trabalho num livro de curta tiragem, na década de 80. Li-o em 1998, colhido numa estante do Clube Naval. Comparei-o com o do Edmar Morel, de 1963. Enquanto este só relata os jornais da época e o que dizia João Cândido, já senil, endeusando-o, o Alte. Leôncio produziu um trabalho encadeado, fartamente documentado, nada emocional, narrando fatos e deixando as conclusões para o leitor. Hoje tudo que ouço falar e vejo escrito na imprensa sobre o assunto, está pautado no livro do Morel. É pena! Fazer o quê. Recontar as mazelas da Marinha no passado? Faço isto sem prazer. Algumas vezes mandei estes escritos para a Imprensa. Fui ignorado. Não vende. A história ao contrário sim. Recentemente a família de João Cândido foi indenizada no que foi contado nos jornais como anistia. Mas como? Ele já foi anistiado três vezes. A primeira logo após a revolta, pelo Congresso. A Marinha não aceitou, prendeu-o junto com os outros, Teriam que pagar pelo menos pelo assassinato de Batista das Neves. Foi anistiado novamente depois, não seguindo para a Amazônia com os outros, para trabalhos forçados no Acre, na construção da Madeira-Mamoré. E agora, por influência da Ministra Marina Silva, pelo Congresso, com direito à indenização. Detalhe: ele faleceu em 1979.
O verdadeiro líder da Revolta, apareceu na década de 40, no interior da Bahia, contando a história do planejamento, urdido numa casa próxima ao Campo de Santana, no Rio de Janeiro, onde se reunia com civis. Chegou a escrever uma carta anônima para o SDGM, desmascarando João Cândido. Chamava-se Francisco Martins. Apurou-se que ele não servia no Minas, mas num dos navios engajados. Estranhamente conseguiu dar baixa da Marinha uma semana depois, silenciosamente. O Cabo Anselmo, líder da insubordinação dos marinheiros em 64 também está vivendo na clandestinamente. Vem tentando conseguir anistia, promoção e indenização. Conseguirá?
Agora vejo transferirem a estátua de João Cândido para a Praça XV. Estava no Museu da República há pouco tempo. Com tristeza.
Um comentário:
Caro Fernando,
Sou mulher, sou loura mas não sou burra. Mas, não entendi.
Você diz que a história é escrita pelos vencedores. Quem foram os vencedores no caso de João Cândido ? A história que o trata como herói (com estátua inaugurada com a presença do Lula) ou a que o apresenta como vilão, como o artigo do Capitão de Mar e Guera Gilberto ? Afinal, ele foi um herói ou um crápula ?
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