sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

As Gralhas Enfurecidas (023)

Três últimos capítulos publicados:
020 - em 10/12
021 - em 14/12
022 - em 17/12
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Guilherme, como fazia nos almoços diários, falava muito e ilustrava todas as suas observações, qualquer que fosse o assunto em discussão, com exemplos extraídos de seus programas preferidos na TV, da qual, confessava, continuava dependente. A luta na concorrência entre as companhias de assistência se transformava em mais um episódio da “Vida Selvagem” e, quando se falava em redução de custos, Guilherme contava o último programa da série “Pequenas Empresas, Grandes Negócios”. Os colegas se entreolhavam e se perguntavam desde quando a GLS, a terceira Seguradora do país, se transformara numa pequena empresa.
Rodrigo, sempre olhando para o relógio, não porque não gostasse da reunião, mas porque estava pensando na hora do almoço e no seu tornedor gigantesco com arroz de passas, comparava a Companhia de agora com a que conhecera quando fora admitido, e se referia àquele período como os tempos românticos, ou, com saudades de sua passagem por Oxford, como “the romantic times”. Era profundamente previdente, colocando em discussão sua preocupação com fatos que poderiam ou não acontecer nos próximos cem anos.
Pedro Rosenbaum, da Informática, passava a maior parte do tempo anotando as solicitações dos usuários do sistema - a que Luiz Felipe chamava de as vítimas do sistema - reclamando sempre do crescimento assustador de seu backlog. Quando era solicitado a explicar alguma coisa de sua área, todos ouviam em absoluto silêncio, prestando muita atenção, mas não entendendo absolutamente coisa alguma.
Em uma oportunidade, ao informar a impossibilidade de extração de um determinado relatório, justificou dizendo que o Sybase não visitava o Oracle. Luiz Felipe interrompeu-o e conclamou os colegas a fazerem uma oração pela reconciliação dos dois, pois, afinal, a empresa não podia sofrer por causa de desavenças, certamente superficiais, entre o Doutor Sybase e o Doutor Oracle.
À Selma Osborne, a única mulher do grupo, cabia a coordenação dos resultados das pesquisas feitas entre os usuários da Assistência 24 Horas. Seu Departamento expedia as cartas-pesquisa, recebia e tabulava as respostas, fazia as anotações das falhas apontadas e enviava relatórios quinzenais a Guilherme, Superintendente da Plataforma, que adotava as medidas necessárias para a correção do problema. Aceitava muito bem as brincadeiras dos colegas e estava sempre ocupada em demonstrar-lhes que seus quatro bilhões de neurônios a mais só serviam para atrapalhar.
E acentuou muito esta afirmação em relação a Pedro Rosenbaum, por causa de um engano de programação no sistema de envio automático das cartas-pesquisa. O computador fora programado para, sempre que um atendimento fosse encerrado, ou aclosado, como aparecia na tela, a carta-pesquisa fosse impressa e, posteriormente, enviada ao segurado da GLS que tinha utilizado o serviço.
Em uma das respostas, uma senhora deixou em branco todos os quadrinhos do formulário e, usando o espaço para os comentários, escreveu que lamentavelmente o usuário não estava em condições de responder à pesquisa porque tinha morrido, e estranhou muito que “vocês não saibam disso porque foram vocês mesmos que fizeram o traslado do corpo”.
O acontecimento foi o assunto principal em mais de uma reunião. Luiz Felipe, na ocasião, disse que perderia o emprego, mas não perderia a piada, e escreveu no jornalzinho interno que o falecido devia ter gostado muito do serviço, porque não tinha reclamado.
O principal auxiliar de Selma, cuja reconhecida competência lhe concedera o privilégio de participar das reuniões semanais, era chamado por BB, não só por causa das iniciais de seu nome, como também porque tinha cara de bebê. As mulheres da companhia, e muitos homens também, enaltecendo sua extraordinária beleza, diziam que era o bebê Jonhson da casa e todas, e alguns todos também, sonhavam em levá-lo para a cama, trocar sua fralda, aconchegá-lo em seu peito e fazê-lo adormecer em seus braços. Sonho, mesmo, porque se BB não era o único rapaz alegre da empresa, era o mais alegre. Com vinte e oito anos de idade, bonito como um deus, como o título de uma peça de Millor Fernandes, moreno, de olhos verdes, com um metro e oitenta e cinco de altura, era, como dizia Guilherme, um exemplo gritante de desperdício dos recursos do Planeta.
Pedro Rosenbaum, que era bem mais loquaz quando não estava diante de um prato de legumes, sem batatas, acrescentava que o BB lindo era, efetivamente, um exemplo típico da falha do software divino.
Luiz Felipe, depois de conhecer o rapaz alegre da empresa de publicidade, o Paulo César dos suspensórios e das gravatas borboletas de cores sem vergonha, havia comentado que cada empresa tinha o BB que merecia e que a GLS estava melhor servida.
Selma e seu BB nota mil eram os mais novos na empresa. Tinham sido admitidos no mesmo dia, vindos da central de atendimento ao cliente de um grande banco e, antes, também tinham trabalhado juntos em outra empresa, o que levou muita gente a comentar que ou Selma tinha preferências sexuais não convencionais, ou o BB não tinha nada de alegre... porque os dois pareciam que estavam se dando muito bem.
Ela não se dava ao trabalho de responder às insinuações, pelo menos, oficialmente, mas, em mais de uma oportunidade, fingira que deixara escapar comentários, tentando passar a idéia de que seu BB não era o que todos pensavam e afirmara por diversas vezes que ele era, apenas, um rapaz muito sensível.
Luiz Felipe caminhou para a sala de reuniões preparando-se para ouvir as tradicionais piadas de seus colegas, mas estava preocupado com o recado que a secretária lhe tinha transmitido. O que o Diretor de Marketing poderia estar querendo com ele ?
Ernesto disse que Luiz Felipe estava com uma cara horrível, afirmou que ele devia ter tomado todas na noite anterior e perguntou se ele tinha dormido com a Teresa, a executiva da agência ou com o Diretor de Artes...
Guilherme disse que provavelmente com os dois, porque, segundo pesquisas divulgadas no Globo Repórter, 72,67 % dos solteiros próximos dos cinqüenta anos, mesmo sendo heterossexuais, tinham, pelo menos, uma experiência homossexual por mês. Ia ainda comentar sobre a sexualidade da jibóia solteira no cio, mas foi interrompido por Pedro Rosenbaum que ensinou que isto era default, o que não combinava com Luiz Felipe, sabidamente um sujeito que possuía uma enorme tendência para atuar sempre fora dos padrões.
Rodrigo não pode se manifestar porque, naquele momento, tinha a boca ocupada, devorando os amendoins que comprara na máquina da sala de repouso.
Selma riu condescendentemente, perdoando a mediocridade das observações, creditando-a ao lamentável excesso de lotação representado pelos tais quatro bilhões de neurônios.
O BB maravilha não disse nada mas estava nitidamente sentido porque fora interrompido quando apresentava seus gráficos coloridos referentes à última pesquisa e não gostara nem um pouco da referência à homossexualidade.
Ernesto disse que a hora do recreio tinha terminado e fez um resumo do que se tinha tratado até aquele momento, informando que alterara a ordem da pauta, justamente por causa do atraso de Luiz Felipe.
- O Mauro decidiu adiar o lançamento das novas plataformas. Ele determinou à área de pesquisa de mercado um levantamento e concluiu que o momento propício não é este. Vocês podem imaginar o quanto ele falou antes de chegar aos finalmentes... a tendência mundial, o comportamento do mercado no Brasil, o lançamento de uma plataforma do principal concorrente em São Paulo, o congresso anual dos corretores em Salvador, a posse do novo Presidente da Federação e outros dois ou três fatores que ele mencionou quando eu já não estava mais prestando atenção.
Guilherme interrompeu e disse que vira na TV uma entrevista em que o Diretor de Marketing de uma indústria farmacêutica nos Estados Unidos, justificando também o adiamento no lançamento de um novo produto, afirmou que o tempo se vingava das coisas que eram feitas sem a sua colaboração.
Ninguém entendeu, mas ninguém pediu que ele explicasse.
O Diretor continuou:
- Ele quer que o projeto seja aprimorado. Disse que quando do lançamento da Assistência 24 Horas, nós estávamos associados aos franceses e, por isso, usamos o conhecimento, a tecnologia deles e eles ainda nos deram assessoria por dois anos. E que, agora, com estas novas plataformas, estamos sendo outra vez os pioneiros no Brasil, não temos conhecimento algum, e não temos de quem copiar. O que é verdade.
Rodrigo olhou para o relógio pela décima vez nos últimos dez minutos... e o Diretor percebeu.
- Antes que o Rodrigo desmaie de fome, e tenhamos que acionar um guincho para levantá-lo... e antes que vocês digam que estou parecendo o Mauro... em suma: ele quer que um de nós viaje à França e à Inglaterra, onde, segundo ele, estão as mais avançadas plataformas de atendimento. É evidente que ele não falou plataforma de atendimento... os mais avançados “call centers” do mundo. Passar uma ou duas semanas, sei lá, para visitar, conhecer, pesquisar, trazer informações. Ele já fez contato com nosso ex-sócio em Paris para acertar os detalhes.
Houve um momento de respeitoso silêncio. Todos já estavam se imaginando em Paris e Londres...
Ernesto tinha lançado a informação mas não pretendia discutir, naquele momento, a escolha de quem viajaria. E, antes que alguém disparasse qualquer pergunta, encerrou a reunião e disse que continuariam a conversar depois do almoço.
- Selma e Bruno, vocês estão convidados a almoçar conosco, sob o patrocínio do Luiz Felipe que, hoje, bateu todos os recordes de atraso.
Guilherme e Rodrigo tinham sido promovidos pouco tempo depois de começarem a participar dos almoços com o Diretor, Luiz Felipe e Pedro Rosenbaum. Este fato, que tinha sido uma simples coincidência, fez com que os funcionários da Companhia passassem a acreditar que ser convidado para o almoço com a chamada equipe executiva era sinal de prestígio e significava promoção ou aumento de salário. Falava-se que era algo equivalente a subir ou descer a rampa do Palácio do Planalto, em Brasília, nos tempos do Presidente Collor.
Selma e o rapaz sensível eram suficientemente inteligentes para não acreditar na lenda... mas estar sendo convidado, naquele momento em que a Companhia crescia, em que haveria naturalmente cargos importantes a serem preenchidos, e logo após o Diretor ter anunciado a viagem à Europa, bem, isto poderia ter algum significado.
Por isso, no carro, indo para o restaurante, Selma e o BB ravissante se deram ao direito de sonhar.
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Capítulo 024 - Prevista a publicação para 21/12

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