Três últimos capítulos publicados:
019 - em 7/12
020 - em 10/12
021 - em 14/12
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Luiz Felipe parodiou o personagem Xantós, que, na peça de Guilherme Figueiredo, “As Raposas e as Uvas”, não entendendo as fábulas que Esopo lhe contava, perguntava sempre ao final:
- E daí ?
- Daí que Renata, queria que “ms” fosse sempre “mercado de seguros no Brasil”. Entendeu ?
Luiz Felipe achou melhor não responder porque não estava querendo prolongar aquela conversa. E se sentia já bastante municiado para as bobagens do almoço do dia seguinte com os colegas. Na verdade, sonhando com um banho quente e uma cama, o que queria mesmo era ir para casa.
Mas José Eduardo ainda não tinha terminado...
- Você vê, por exemplo, a água na chaleira....
Luiz Felipe começou a achar que seu amigo, além do baço, devia ter perdido uma boa parte das células cerebrais, as quais eram as únicas do corpo humano que não se regeneravam, como lhe dissera Guilherme, repetindo a lição de mais um Globo Ciência. Ou teria sido o Globo Repórter ?
- Chaleira, José Eduardo ?
- A água na chaleira... Ela ferve sempre a cem graus centígrados, pelo menos ao nível do mar. A Renata queria que as pessoas fossem como a água na chaleira, ou seja, que fervessem sempre a cem graus centígrados. Você ferve sempre a cem graus centígrados ? Claro que não. Você, às vezes, ferve a três graus, às vezes, só a duzentos graus, às vezes, ferve a cinco graus negativos... e às vezes, não ferve. Dá para entender ?
Antes que José Eduardo dissesse que Renata também queria que as pessoas fossem como o ângulo reto, ou seja, que tivessem sempre noventa graus, Luiz Felipe resolveu chamar o garçon para pedir a conta, mas José Eduardo antecipou-se e pediu a saideira, no caso, a sua sexta dose de uísque. Certamente, Luiz Felipe pensou, o baço não estava lhe fazendo a menor falta.
- E você ? Pelo visto, vai continuar solteiro... Depois deste meu discurso idiota... Não me leve tão a sério...
Luiz Felipe apenas riu. Estava muito cansado, cansado até para se levantar e ir embora. Queria fazer uma última pergunta mas estava com medo de que José Eduardo começasse com outra explicação absurda.
Arriscou:
- E, agora, você está sozinho ? Casou outra vez?
José Eduardo riu:
- Eu saí de casa há menos de dez dias. Estou por aí..., quer dizer, estou em um apart-hotel...
Finalmente, José Eduardo concordou em ir embora. Luiz Felipe insistiu em que ele não dirigisse, não porque estivesse parecendo bêbado, mas porque ele não poderia não estar bêbado, depois de... quantos uísques ? Seis, sete, oito ? José Eduardo dissertou sobre o incrível aumento de sua resistência ao álcool depois da perda do baço, pegou o carro, avançou o sinal e entrou na contramão.
Luiz Felipe, com menos da metade dos uísques tomados, não quis se arriscar. Combinou com o manobreiro, deixou o carro com ele e tomou um táxi. Quando o motorista parou dez minutos depois, acordou Luiz Felipe, que cochilava no banco traseiro.
- Chegamos, doutor. O senhor está bem ?
Luiz Felipe não ouviu. Antes de pagar, olhou, surpreso, para o prédio.
- O que é que o senhor veio fazer aqui ?
O chofer suspirou pacientemente, acostumado com aquele tipo de passageiro, apanhado naquela hora, na porta daquele restaurante:
- Eu vim lhe trazer, doutor. Foi este o endereço que o senhor me deu.
Luiz Felipe mandou o motorista seguir para Botafogo.
Entrou em casa, esqueceu o desejo do banho quente, ignorou o pisca-pisca da secretária eletrônica e desabou sobre a cama, tirando, apenas, os sapatos. Mas demorou a pegar no sono, tentando adivinhar se tinha sido a bebida ou se tinha sido o discurso louco de José Eduardo que o fizeram informar ao motorista o endereço de Luísa.
Só chegou ao escritório ao meio-dia.
A secretária invadiu a sala e, aflita, disse que estava telefonando para ele há mais de duas horas, e que ninguém atendera. Ela ficara muito preocupada, achando que alguma coisa de ruim, Deus o livre e guarde!, tinha acontecido. Luiz Felipe mandou que ela colocasse no devido lugar seu núcleo neurótico e pediu café.
- Posso lhe passar os recados ?
- Mesmo que eu diga que não, você vai passar.
A secretária abriu o bloco de anotações e colocou os óculos:
- Primeiro os telefonemas pessoais: Dona Teresa, a moça da agência, às oito e meia; a Dra. Rosângela, sua... sua dermatologista, às nove e cinco, às nove e meia e às dez...puxa ! e a Dona Mercedes, às dez e vinte.
Fez uma pausa e acrescentou:
- A Dona Ana Maria não ligou...
Luiz Felipe perguntou-lhe quem mais não tinha ligado. Suzana ignorou a pergunta e prosseguiu:
- Agora os recados profissionais: o Dr. Mauro Cardoso, quer falar com o senhor. O Dr. Ernani, Diretor Regional de Santa Catarina, dizendo que virá ao Rio com três corretores importantes, na próxima semana; o César Mendes, da Matriz, informando que a reunião de amanhã foi cancelada.
Rodrigo dizia que Suzana, ao transmitir recados, parecia o locutor da Voz do Brasil e Ernesto acrescentava que ela o fazia com a velocidade de uma tartaruga paraplégica.
- Acabou ?
- Acabou. Quer dizer, os recados. Mas o senhor esqueceu que hoje é terça-feira, o dia da reunião executiva. Estão na sala de reuniões, desde às dez horas. Quer dizer, estavam... já são meio dia.
- Está bem. Se mais alguém não ligar, diga que eu não retorno a ligação logo que eu não chegar... Outra coisa: não são meio dia. É meio dia.
A tal reunião executiva acontecia todas as terças-feiras, às dez horas. Como dizia Ernesto, só seria tolerada a ausência de quem tivesse morrido, e desde que o falecido cumprisse a obrigação de avisar, com pelo menos uma hora de antecedência, que não compareceria porque ia morrer. Os que se atrasavam, como multa, pagavam o almoço. Rodrigo era sempre o primeiro a chegar e torcia para que alguém não aparecesse na hora, porque comia mais ainda quando não tinha que pagar a conta.
Apesar de todas as brincadeiras, era um encontro importantíssimo na rotina organizacional do Diretor, ocasião em que, sem hora para terminar, discutiam-se todos os assuntos de todos os setores.
Participavam, além de Luiz Felipe, Guilherme, Rodrigo e Pedro Rosenbaum, os chamados executivos que faziam a Companhia funcionar, Selma Osborne, Gerente de Controle de Qualidade e Bruno Bezerra, seu assessor principal.
Ernesto, português nascido no Porto, se proclamava como altamente pragmático, o que efetivamente era, e procurava conduzir as reuniões com o máximo de objetividade possível, cortando com firmeza, mas sem perder a ternura, qualquer tentativa de vôos filosóficos por parte dos membros do grupo. Não era uma tarefa fácil.
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Capítulo 023 - Prevista a publicação para 19/12
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