sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

As Gralhas Enfurecidas (026)

Três últimos capítulos publicados:
023 - em 19/12
024 - em 21/12
025 - em 24/12
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O jantar com os colegas da GLS terminou muito tarde. Luiz Felipe não poderia faltar ao encontro com Mauro na manhã do dia seguinte, e não foi encontrar-se com Ana Maria, nem telefonou para dizer que não ia.
Às oito e meia estava na sala da secretária do Diretor de Marketing, que só chegou uma hora depois.
- Tudo bem, Luiz Felipe ?
- Tudo bem.
Conversaram amenidades por quinze minutos, tomaram chá, havia sempre chá na sala de Mauro, chá de diversos tipos e de diversas nacionalidades.
Luiz Felipe percebeu que, como sempre, Mauro estava demorando a entrar no assunto que o levara a chamá-lo, fosse ele qual fosse. Mas, pelo menos, não estava discursando sobre as tradicionais baboseiras da fraqueza da força nem lhe fora colocada a crucial pergunta sobre o trágico dilema Xerox versus Coca-Cola. Mas continuava filosofando...
Ernesto dizia que Mauro não falava, pregava, e, agora, estava pregando outras bobagens, e o tema era Sherlock, não o personagem do Conan Doyle, mas Sherlock, seu cão pastor.
Mauro informava que o cachorro sabia que era cachorro, gostava de ser cachorro e queria continuar sendo cachorro. Luiz Felipe estranhou que Mauro pudesse saber destas convicções do Sherlock porque, como ele mesmo dissera, o cão só faltava falar e, se não falava... Mas decidiu não questionar, porque, certamente, Mauro diria que o cão, não era cachorro, era cão, se comunicava através transmissão de pensamento.
Quando pareceu que Mauro ia começar a chegar aos finalmentes, como dizia Ernesto, o telefonou vermelho tocou.
Era uma linha privada através da qual o Presidente, o Vice-Presidente e Diretores da Matriz se comunicavam. Mauro ficou em pé e Luiz Felipe deduziu que era o Presidente. Mauro não tinha qualquer origem militar, mas sempre ficava em pé, quando atendia telefonemas do Presidente. Não era submissão, nem mesmo respeito. Ele achava que, em pé, raciocinava melhor.
Enquanto Mauro falava com o Presidente, a secretária entrou e disse que Suzana estava na outra linha. Como parecia que a conversa de Mauro com o Presidente ia demorar, ele já se sentara..., Luiz Felipe atendeu Suzana na sala da secretária.
- O que foi Suzana ? Você não larga nunca do meu pé ? Nem aqui ?
- Não sou eu, Dr. Luiz Felipe. Quem não está largando de seu pé é a Dona Ana Maria. Ela disse que o senhor não foi à casa dela ontem à noite e, pediu, não, mandou..., mandou dizer que está vindo para aqui e vai esperar na recepção até o senhor atendê-la.
Luiz Felipe ficou imaginando Ana Maria, que uma vez ele chamara de Napoleonazinha de quintal, esbravejando com Suzana, como se fosse ela a culpada pelo fato dele, Luiz Felipe, ter faltado ao encontro marcado.
Imaginou-a também na recepção de seu escritório, não necessariamente fazendo qualquer escândalo, mas, pelo menos, fornecendo farto material para o blablablá do próximo almoço de Luiz Felipe com os colegas. Esta visita não era conveniente.
Olhou para o relógio Gucci, presente que Ana Maria certamente comprara na Canal Street, em Nova Iorque, pensou durante cinco segundos, e decidiu:
- Telefona para ela e diga para ela me encontrar meio dia e meia, no restaurante japonês. Ela sabe qual é.
Voltou à sala do Mauro que, outra vez em pé, estava se despedindo do Presidente.
- Desculpe, Luiz Felipe, mas era o Presidente...
Deu ordens à secretária para não ser interrompido, saiu detrás de sua mesa e foi para o sofá. Abriu uma pasta de onde tirou algumas folhas de papel. Luiz Felipe conseguiu ver que havia um organograma.
Mauro falou sobre as novas plataformas, discursou longamente sobre os principais “call centers” da Europa e dos Estados Unidos, explicou mais longamente ainda porque resolvera adiar o lançamento, e colocou sobre a mesa de centro o organograma, com a parte escrita virada para baixo.
O núcleo neurótico penetrou sorrateiramente e, sentado sobre o braço da poltrona de Mauro, cochichou:
- Ele está escondendo o organograma. Você está fora... Entre com seu pedido de aposentadoria e vá para a pracinha jogar cartas.
Mauro pediu mais chá e prosseguiu:
- Estamos passando de uma para quatro plataformas. Este rapaz, de quem o Ernesto gosta muito, o Guilherme Sampaio, é o Superintendente da Plataforma de Assistência 24 Horas, e deve ser naturalmente o Superintendente da Plataforma de Aviso de Sinistro. Quem pede o reboque, no caso de acidente, vai poder avisar o sinistro. Parece-me, pois, lógico, que estas ações estejam sob a coordenação de uma só pessoa, ou seja, que o Superintendente seja um só para as duas plataformas. Você concorda ?
Luiz Felipe estava atônito... por que a conversa estava sendo com ele e não com Ernesto, o Diretor de Operações ? E a pergunta... era mais uma pergunta retórica, especialidade do Diretor de Marketing, ou era para ser respondida ?
Resolveu responder:
- Em princípio, sim. Mas há os reboques por causa de panes em que o segurado não tem nenhum sinistro para avisar.
- Claro, mas o percentual é pequeno...
Não era pequeno. Nos últimos doze meses, a quantidade de reboques acionados por causa de pane tinha representado mais de quarenta e sete por cento do total de reboques.
Mas, enfim, Luiz Felipe e todos na GLS sabiam, quando o Diretor de Marketing tinha tomado uma decisão, ainda que levasse muito tempo para tomar, jamais voltava atrás, e se as estatísticas não pudessem sustentar sua tese, ele simplesmente as ignorava, ou as interpretava a sua maneira. Em uma palestra para Diretores Regionais, justificando uma medida aparentemente estapafúrdia, ele chegou a afirmar que a estatística era a arte de errar com precisão.
Mas Luiz Felipe insistiu:
- Não é pequeno, Mauro. É quase cinqüenta por cento...
- Pois é... quase cinqüenta por cento é menos da metade... Ou não ?
Luiz Felipe apenas riu. Responder o quê ?
Mauro continuou:
- Então o Guilherme fica com duas plataformas. As outras duas são plataformas de informações, ou seja, informamos aos corretores os valores dos prêmios de seguros na Plataforma de Cálculo e na quarta, que podemos batizar de Serviço de Atendimento ao Cliente, se não aparecer um nome melhor, vamos prestar informações, registrar reclamações, sugestões etc etc e etc...
Fez uma pausa. Luiz Felipe achou que seria o indicado para as novas plataformas e não gostou. Estava esperando algo melhor. O núcleo neurótico estava tomando o resto de chá da xícara do Mauro e não se manifestou.
- Do que eu conheço e do que o Ernesto me fala, o gerente do Guilherme... como é o nome dele ?
- Rodrigo Barbosa.
- Pois é, segundo o Ernesto, este Rodrigo também é muito bom. Soube que ele disputou a vaga de Superintendente com o Guilherme e perdeu por causa da idade. Vamos, então, promovê-lo a Superintendente e ele fica com as plataformas de cálculo e de informações. O que você acha ?
Luiz Felipe entendeu que não ficaria com as novas plataformas, animou-se e disse que achava muito bom. Começou a elogiar o trabalho de Rodrigo, quando o telefone vermelho tocou outra vez.
Enquanto Mauro falava, Luiz Felipe tentava colocar em ordem seus pensamentos e, mais atônito, perguntava-se por que ele estava ali e não o seu Diretor ? Ernesto lhe dissera que Mauro queria conversar sobre o projeto da agência e estavam conversando sobre as promoções. Mas isto, concluiu, também era típico do Diretor de Marketing.
Ele desligou o telefone.
- Era o Stênio, o Diretor de Finanças. Nós tínhamos um almoço com o Presidente de uma corretora de São Paulo, mas ele não conseguiu vir. Ótimo, vamos almoçar e continuar nossa conversa. Você não tem nenhum compromisso para o almoço, tem ?
- Não.
Luiz Felipe pensou em Ana Maria e viu-a, sozinha, devorando os peixinhos crus e, depois, indo ao seu escritório para enterrar em seus olhos, ou em seu traseiro, os pauzinhos japoneses, lambuzados de molho de soja.
Subiram ao oitavo andar, onde ficava o restaurante freqüentado por quase todos os executivos da GLS.
Fora ali, Luiz Felipe estava recordando, que ele estivera com Rogério Campos, na penúltima entrevista antes de sua admissão na GLS. Decidiu, então, considerar que era um bom sinal estar almoçando, rodeado por Diretores, no mesmo local onde tudo começara e convenceu-se de que o todo poderoso Diretor de Marketing iria oferecer alguma coisa muito importante na estrutura da Companhia.
Seu raciocínio era muito simples e muito lógico. Se a partilha já fora feita, ficando Guilherme com mais uma plataforma, e Rodrigo com as outras duas, o que ele considerava uma ótima solução, não sobrava nenhuma plataforma para Luiz Felipe. Ele ficaria, então, com algum cargo acima dos Superintendentes. Estava imaginando-se como um super-superintendente ou, quem sabe ?, um Vice-Diretor, ou, por que não ?, um Diretor-Adjunto.
Mauro fez os pedidos sem consultar Luiz Felipe, mas ele não se importou. Sua excitação aumentava a cada minuto e ele já começara a senti-la no estômago. Ele comeria qualquer coisa, até os peixinhos vivos da Ana Maria ou não comeria coisa alguma, sem fazer qualquer diferença.
Mauro retomou o discurso, mas já tinha mudado de assunto.
Luiz Felipe lembrou-se de sua infância, nas matinês do cinema do subúrbio, quando o operador colocava o rolo errado e a história ficava sem sentido por alguns segundos, até começarem as vaias, e o Seu Raimundo perceber o engano.
Mauro tinha pulado um pedaço do enredo... tinha escolhido os papéis de Guilherme e de Rodrigo... mas e ele, onde ficava ? Seria um ator coadjuvante ou seria o Diretor do filme ?
Saíram do restaurante. Luiz Felipe olhou para o relógio digital da parede. Estava conversando com Mauro há quase cinco horas. Entraram de novo na sala, ele tomou chá, pediu licença a Luiz Felipe e falou ao telefone por quinze minutos, retornando três ligações. Uma delas, Luiz Felipe percebeu, era da agência de publicidade.
Separou alguns papéis e iniciou outro discurso:
- O orçamento do meu Departamento para o próximo ano é de três milhões e setecentos mil dólares, dos quais um milhão e duzentos mil estão destinados à publicidade. A GLS nunca separou tanto dinheiro para publicidade. É muita verba... nós temos que escolher muito bem onde aplicar, quer dizer, escolher a mídia apropriada, a melhor agência... aprovar o melhor projeto. O Ernesto escolheu você para ser o interface com a agência. Não sei se foi uma boa escolha.
Luiz Felipe notou indícios de irritação no discurso de Mauro.
- O Ernesto, você sabe, é um sujeito teimoso, e insistiu que esta atribuição fosse de alguém da equipe dele e não de alguém aqui do Marketing. Eu respeitei. Respeitei a decisão e aprovei a escolha porque você, lá, é o melhor para esta função. Mas agora... e vamos falar francamente....
Levantou-se, serviu-se de mais chá e ofereceu a Luiz Felipe.
- O Charles Spencer, você sabe, o Partner in Charge, me telefonou e disse que você não foi nada gentil com Teresa. Disse que você foi agressivo, muito irônico e ainda entrou em considerações sobre a vida pessoal do Diretor de Artes da agência, o Paulo César. Em suma, que você não foi nada profissional.
Luiz Felipe sentiu-se como o Hollyfield tendo a orelha quase decepada pela mordida do Mike Tyson, na luta a que assistira na TV, algumas horas antes. O núcleo neurótico, que estava sentado sobre a mesa ao lado do sofá, começou a rir e, com o melhor acento francês que pode encontrar, disse que aquele, certamente, seria “un jour pas comme les autres”.
Luiz Felipe recuperou-se muito depressa, sentindo que a orelha estava no mesmo lugar. Ele sabia que, mais cedo ou mais tarde, a observação surgiria, mas a esperava de Ernesto, e não do Diretor de Marketing.
Ele também sabia que devia haver alguma ligação muito forte entre o Mauro e a agência Mark and Spencer. Se não fosse assim, ela não teria a menor chance de se candidatar ao projeto, nem o sócio principal telefonaria para fazer queixas de seu comportamento. Mas... que ligação ? E quem teria relatado ao Charles Spencer o que ocorrera na reunião ? Teresa ou o misto de professor de História Egípcia e Diretor de Artes, o alegre Paulo César das gravatas borboletas ?
Ele fora realmente irônico, efetivamente agressivo, pouco profissional e, lembrava-se agora, tinha até pensado em telefonar para se desculpar. Não o fizera e não era a hora de fazê-lo. Mas tinha de se defender:
- Mauro, o projeto foi muito bem apresentado, a Teresa fez um bom trabalho, usou o power point... mas havia erros de português que nem o meu contínuo cometeria. Além disso, havia frases idiotas, demasiadamente óbvias. Em resumo, um trabalho muito bom na forma mas pobre de conteúdo. Fui irônico ? Fui, sempre fui, é o meu estilo. Agora, sobre agressividade... não sei, deve ser exagero do Paulo César, que, diga-se de passagem, é um rapaz muito sensível.
Fez uma pausa, pensando como tratar o item seguinte:
- Quanto a considerações sobre a vida pessoal do Paulo César... eu prefiro não comentar, porque aí, sim, eu estaria me metendo indevidamente em sua vida pessoal. Só posso lhe dizer que eu o conheci meses antes da reunião, em uma situação particularmente desagradável. Eu não sabia que ele era da agência e ele não sabia que eu era da GLS. Uma coincidência. Uma infeliz coincidência.
Mauro, como sempre, pareceu só ter ouvido o que lhe interessava e perguntou se Luiz Felipe iria dar parecer contrário ao projeto da agência.
Luiz Felipe disse que haveria uma nova reunião, na Mark and Spencer, durante a qual Teresa iria apresentar as modificações e, depois, então, ele chegaria a uma conclusão. Mas a resposta soou extremamente burocrática.
Luiz Felipe estava percebendo algo mais do que um simples interesse pelo projeto. E decidiu que pediria a Teresa para ir a seu apartamento, para eliminar a mensagem comprometedora no seu micro..., quando obteria as informações que estavam faltando para fechar aquele quebra-cabeças de mais de mil peças.
O jogo, fosse ele qual fosse, estava encerrado e não haveria prorrogação.
Luiz Felipe disse que manteria Mauro informado e perguntou se ele queria acompanhá-lo na reunião com a agência, na semana seguinte.
- Não, eu não vou. Quero manter a independência do Ernesto e a sua neste assunto. O que lhe peço é que você analise o projeto com muito profissionalismo. Eu tenho mais problemas do que você pensa aqui dentro. Para mim é muito importante que a Mark and Spencer faça um bom trabalho. Só isso.
Luiz Felipe lembrou-se de sua psicanalista e, uma vez mais, quis dar a última palavra:
- Eu sempre fui profissional e vou continuar sendo.
Lembrou-se do encontro com Teresa em seu apartamento e acrescentou, esforçando-se para não sorrir:
- Eu não tenho nem vou ter qualquer problema com a Teresa. Você pode ficar tranqüilo.
Ao caminhar para a porta, viu sobre a mesa o organograma, na mesma posição. Passou pela secretária e deu-lhe o chocolate de menta que apanhara no restaurante.
Na rua, lembrou-se do documentário do “Arquivo N” na TV, sobre o imperador Selassié, da Etiópia. Ele estava no Brasil quando houve um golpe militar em seu país. O que disseram na época foi que Selassié chegara como Selassié e voltara como Sei Lá Se Ainda Sou.
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Capítulo 027 - Prevista a publicação para 28/12

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