domingo, 14 de dezembro de 2008

As Gralhas Enfurecidas (021)

Três últimos capítulos publicados:
018 - em 4/12
019 - em 7/12
020 - em 10/12
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Esperou o garçon servir a terceira dose de uísque e tomou um gole enorme. Luiz Felipe ia perguntar se ele podia beber, não tendo baço, mas não conseguiu. José Eduardo estava mais rápido do que o Schumacher, na Formula Um, cujo treino a TV estava mostrando.
- A irmã da Renata fez bodas de prata, teve uma festa badalada no Parque Lage e eu não queria ir. Aí, você sabe, começou aquele papo: meu bem, claro que você tem que ir, não é por mim, nem pela minha irmã, mas por você mesmo. Você vai encontrar os amigos, se distrair... você tem que sair da concha... etc etc etc. Pois bem, fui. Sabe o que aconteceu na volta ?

Luiz Felipe sabia que era uma pergunta retórica, mas respondeu, porque sabia o que tinha acontecido:
- Sei. Ela reclamou que você ficou o tempo todo desligado...
José Eduardo concordou:
- Pois é. Mas sabe o quê mais ?
Imitou a mulher, exagerando o sotaque paulista:
- Meu bem, que você esteja deprimido, tudo bem. Mas precisava ficar num canto, parado, sem falar com ninguém ?
- Eu sei como é.
- Aí eu disse para ela que aquela observação era como se ela dissesse: meu bem, tudo bem que este câncer horroroso lhe tenha feito perder a língua, os dentes e as cordas vocais. Mas você precisava ficar calado, sem falar com ninguém ?
Luiz Felipe disse que tinha sido a melhor imagem que alguém podia fazer sobre a depressão, mas já estava na hora de mudar o assunto. Na TV, começava mais um capítulo da novela, o que era um bom motivo para sair do bar e jantar. Luiz Felipe estava querendo saber da separação do amigo e perguntou diretamente:
- E a separação ? Por que vocês se separaram ?
José Eduardo falava atabalhoadamente e, percebendo o espanto de Luiz Felipe e seu esforço para acompanhá-lo, fez uma pausa, uma pequena pausa, para informar que ainda estava tomando Prozac, por causa da depressão, e que andava meio agitado...
Luiz Felipe disse que ele estava agitado inteiro, e perguntou se ele podia misturar uísque com o Prozac, mas ele não respondeu. Continuou falando muito depressa, como se alguém, a qualquer momento, fosse interrompê-lo, dizendo que seu tempo havia se esgotado.
Enquanto ele contava a história de seu casamento, Luiz Felipe lembrava-se dos cursos de noivos em que José Eduardo e Renata davam palestra, falando sobre relacionamento conjugal, tentando passar para os que iam se unir pelo santo sacramento do matrimônio, como dizia o padre coordenador do curso, sua experiência de um casamento bem sucedido. Bem sucedido... Lembrou, então, a famosa frase do Ministro Gordo para o Ministro Barítono: quem sabe, faz, quem não sabe, ensina.
O garçon trouxe os pratos. José Eduardo parecia prestes a ter um orgasmo múltiplo, diante de um enorme tornedor à Cafe de Paris, soterrado debaixo de uma montanha de alho frito, ao lado de uma pasta mais ou menos disforme, que o cardápio chamava de arroz à piemontese.
Achou, então, que, finalmente, teria uma chance de falar alguma coisa, pois, certamente, como o colega Rodrigo, José Eduardo era suficientemente educado para não falar de boca cheia.
Não era. Mesmo com a boca ocupada, ele não parou de falar.
- O que eu acho, Luiz Felipe, é que pessoas da minha geração, quer dizer, os casais que se casaram na mesmo época do que eu, um, dois, três anos antes ou depois, ou estão separadas, ou vão se separar, ou vão arrepender-se de não ter se separado. De treze casais de minhas relações que se casaram neste período, eu sou o oitavo, o oitavo!, que se separa. Isto é mais do que sessenta por cento... tem mais gente se separando na minha faixa etária do que em qualquer outra. Você sabe por quê ?
Luiz Felipe viu que estava diante de outra pergunta retórica e ficou feliz por não ter de responder.
- Erro de seleção. Sabe quando pensei nisso ? Lá na minha empresa, o setor de recursos humanos chamou a nossa atenção pelo alto índice de rotatividade. Aí, começaram aqueles levantamentos idiotas, cada um indo numa direção sem chegar a lugar algum, não concluindo coisa alguma. Sabe aquela história do achismo? Lembra aquelas reuniões imbecis ? Eu dizia que achava que a sinistralidade ia aumentar, você dizia que achava que o mercado ia reagir, o Jean Marie dizia que não achava nada porque Diretor não achava, decidia... pois é. Foi a mesma coisa. Todo mundo achou uma porção de coisas. Até que alguém mais inteligente propôs a contratação de uma empresa especializada que, em menos de um mês, apresentou um relatório absolutamente correto.
José Eduardo fez uma pausa, bebeu o resto de seu uísque e concluiu:
- O que o relatório disse foi que a alta rotatividade não tinha nada a ver com ausência de motivação, inexistência de plano de carreira, condições ambientais de trabalho e outras coisas que tinham surgido nas sessões do achismo. O motivo principal, sem ser o único, claro, era o erro no recrutamento, na seleção, ou seja, estávamos admitindo mal, enquadrando os candidatos em um perfil que não era o apropriado para as funções que eles iam exercer.
José Eduardo procurava ansiosamente o garçon para reabastecer seu prato com a massa disforme e servir-lhe outro uísque - o quinto...
Luiz Felipe aproveitou a pausa e comentou:
- Em resumo, você está dizendo que nós escolhemos mal, isto é, nós e elas. Quer dizer, vocês... Estou me convencendo, cada vez mais, que faço muito bem em não me juntar com ninguém, não preciso fazer recrutamento algum, não cometo erro algum de seleção e meus relacionamentos podem durar um mês, um dia, uma hora....
- Exatamente. E porque eu estou acentuando essa característica na minha geração ? Você não casou, mas lembra, nós tínhamos que casar com mulheres virgens. A famosa himenlatria. A gente casava sem conhecer a parceira, e ela também não nos conhecia, naquilo que, se não era a única parte importante na relação, era certamente a mais importante: o entrosamento sexual. A gente, quer dizer, nós, os homens, tínhamos uma larga experiência sexual com as prostitutas, mas na hora de transarmos com as esposas, não queríamos que elas tivessem o mesmo comportamento, a mesma atuação das prostitutas. E elas não tinham mesmo, porque não conheciam nada sobre o assunto.
José Eduardo tinha acabado de comer e já estava pedindo a torta alemã, ordenando que o garçon colocasse o dobro do creme de leite. E, enquanto esperava, concluiu o pensamento:
- Aí, vinha a frustração sexual, a infidelidade etc etc etc... Não foi o meu caso, mas aconteceu com um casal amigo nosso, um desses da lista dos oito... Outra coisa: eu acho, e lá vamos nós outra vez cair no achismo..., o que eu acho mesmo, Luiz Felipe, é que relacionamento é um troço muito complicado. E não estou falando só de casamento. Qualquer relacionamento. Tem que se ter uma dose de transigência e uma dose variável. Às vezes, a dose de ontem não é suficiente para os acontecimentos de hoje e é maior do que a necessária para amanhã.
Deu a primeira colherada na torta, lambuzou o bigode com o chantili e prosseguiu:
- Você quer ver outra coisa ? Eu estava escrevendo no computador um artigo para a Revista de Seguros e digitava muitas vezes “o mercado de seguros no Brasil”. Aí, o Milton, lembra dele, o sobrinho da mulher do Jean Marie, o cara da informática, me viu digitando e me ensinou um grande macete. Mexeu sei lá o quê e quando eu digitava as letras “m” e “s” aparecia “mercado de seguros no Brasil”, ou seja, eu não precisava digitar as palavras todas.
Luiz Felipe olhou para o próprio copo, para o de José Eduardo, calculou quantas doses haviam tomado e concluiu que deviam estar completamente bêbados, porque aquela história estava parecendo uma tremenda asneira.
José Eduardo percebeu a perplexidade do amigo.
- O que acontece, Luiz Felipe, é que toda vez que eu aperto as teclas “m” e “s”, aparece na tela do monitor “o mercado de seguros no Brasil”. Sempre. Só que na vida, um dia você digita “ms” e aparece “elefante”, ou “bicicleta”, ou “liqüidificador” e, no outro dia aparece qualquer outra coisa... e em outro dia não aparece nada e, de repente, até aparece “o mercado de seguros no Brasil”.
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Capítulo 022 - Prevista a publicação para 17/12

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