Luiz Felipe não conseguia concentrar-se no trabalho. Uma centena de mensagens estava diante de si, no computador, e ele não estava conseguindo responder. Não era cansaço, era sono mesmo, associado a uma inexplicável preocupação pelo jantar que marcara com Mercedes.
Como dizer a ela que as reprovações não tinham importância pois a terceira candidata, que sequer era candidata e que aparecera no restaurante sem ser convidada, fora a escolhida ? Mas ele precisava dizer ? E a dermatologista fora, realmente, a escolhida ? E escolhida para quê ?
Interfonou para a secretária e disse para não ligar para a dermatologista.
A secretária riu:
- Agora é tarde... ela já está na linha. Quer que eu diga que entrou outra ligação ?
Luiz Felipe hesitou. Se, em menos de doze horas, Rosângela já estava ligando... ficou pensando se ela seria daquele tipo que ficaria telefonando o tempo todo e se o melhor não seria cortar logo os baobás, antes que eles crescessem. Achou que a dermatologista não parecia ter lido Exupery ou qualquer outra coisa além dos livros de medicina...
Resolveu atender.
- Você viu o jornal de hoje ? Tem uma notícia sobre odores que excitam sexualmente... Você leu ?
- Rosângela, eu não dormi. Mais tarde eu ligo.
- Vou mandar pela Internet. Qual é o seu endereço ? A gente janta hoje ? Aqui em casa mesmo. Vou fazer uma coisa especial...
Pouco antes do almoço, foi chamado à sala do Diretor, onde já estavam Guilherme Sampaio, Superintendente de Operações da Plataforma 24 Horas, seu Gerente, Rodrigo Barbosa, e Pedro Rosenbaum, Gerente de Informática.
Guilherme e Rodrigo, não eram originários da GLS, como Luiz Felipe e Ernesto Fialho. Eles tinham sido admitidos no mesmo mês, quando da criação da GLS Assistência 24 Horas. Com um desempenho excepcional como técnicos de assistência, chegaram rapidamente às posições que ocupavam. Tinha sido muito difícil escolher quem seriam o Superintendente e o Gerente e, depois de se verificar o empate em quase todos os itens da avaliação, Guilherme ficou com o posto mais alto por causa da idade. Com trinta e dois anos, ele era apenas alguns meses mais velho do que Rodrigo.
Pedro Rosenbaum tinha sido admitido alguns meses antes, mas já entrara como Gerente de Informática.
Os três eram muito competentes. Juntamente com Luiz Felipe, o mais velho e o mais antigo na GLS, formavam a equipe que, sob o comando de Ernesto Fialho, fazia a Companhia funcionar.
Havia modificações importantes na empresa. A associação com a Seguradora francesa terminara. A GLS Assistência 24 Horas estava sendo incorporada ao grupo GLS Seguros e a incorporação trazia um ambicioso projeto de expansão, conseqüência do extraordinário sucesso obtido com a Assistência 24 Horas.
Ernesto comunicou as inovações que deveriam estar implantadas até o final daquele ano, informando que já havia recebido a aprovação do Presidente da Companhia ao relatório preparado por ele e pelo Diretor de Marketing.
Luiz Felipe estava ouvindo atentamente e concluiu que, afinal, o Diretor de Marketing devia ser mais competente do que faziam supor suas histórias bobas sobre a fraqueza da força e o território da marca.
Ernesto estava entusiasmado:
- Vamos criar mais três plataformas de atendimento. Além da Assistência 24 Horas, vamos atender aos corretores, fornecendo cálculos de prêmios de seguros de automóvel, vamos atender aos corretores e segurados que queiram avisar sinistros, e vamos atender ao público em geral, recebendo reclamações e dando informações sobre todas as atividades da Companhia. Todas funcionando 24 horas, todos os dias do ano. A reunião que íamos ter hoje de manhã foi adiada porque a agência de publicidade atrasou a entrega do projeto de divulgação das novas atividades.
Ernesto distribuiu uma cópia do relatório aos participantes e determinou suas tarefas nesta primeira fase.
Pedro Rosenbaum deveria passar uma semana em São Paulo, reunindo-se com a empresa de informática que estava encarregada de desenvolver os sistemas para as novas plataformas.
Guilherme e Rodrigo, com a experiência da Assistência 24 Horas, seriam os contatos com a área de Recursos Humanos da Matriz, para cuidar do recrutamento e seleção do pessoal. A previsão inicial era que o quadro de técnicos passaria de cento e vinte para cerca de quatrocentos.
A Luiz Felipe, conhecido como o emérito escriba da empresa, caberia, numa primeira etapa, cobrar da agência de publicidade o projeto de divulgação, analisá-lo, propor as modificações e relatá-las numa próxima reunião. Ele seria o contato permanente com a agência, ou o interface, como diria o Diretor de Marketing.
A empresa crescia e esta sensação estava nitidamente presente nos rostos de todos que, satisfeitos, percebiam, cada um a sua maneira, uma fantástica possibilidade de ascensão funcional e salarial no novo organograma.
Deveria haver, é o que pensava Rodrigo, mais uma superintendência e ele tinha todo o direito de alimentar a esperança de ser o escolhido.
Guilherme imaginou-se como o Superintendente de, pelo menos, mais uma plataforma, o que significava, naturalmente, mais prestígio na Companhia e, certamente, um bom aumento no salário.
Pedro Rosenbaum viu-se numa posição de maior destaque, acreditando ser justa sua promoção ao cargo de Superintendente.
Luiz Felipe, por ser o mais antigo, sonhava mais alto, com alguma coisa parecida com Vice-Diretoria. Mas, certamente, a noite quase indormida fora a responsável por esta fantasia e logo voltou a lembrar-se de sua psicanalista dizendo que idealização era véspera de esculhambação.
Descendo para o almoço com os colegas, ouviu seu núcleo neurótico interromper a música no elevador:
- Acorda... Não existe este cargo na GLS!
- Sim, mas também não existia a Assistência 24 Horas nem a plataforma de cálculo, nem...
No térreo, Guilherme perguntou se Luiz Felipe estava falando sozinho.
- Sozinho, não... Estava conversando com meu núcleo neurótico.
Ele ouvira a palavra pela primeira vez quando fizera análise, há muitos anos. Era a tradução razoavelmente adequada de um palavrão alemão, coisas de Freud, que significava qualquer coisa parecida com um temor exacerbado pelo que poderia ou não acontecer, geralmente cercado das piores previsões possíveis. O tal do palavrão estivera presente em várias situações de sua vida, e voltava com muita freqüência.
Quando os pais estavam embarcando para a Europa, ouviu o pai dizer a um amigo que estava se sentindo como uma criança indo a Disneilândia, mas, ao invés de sentir-se feliz por vê-lo realizando um sonho muito antigo, achou que o avião fosse cair e que eles não voltariam vivos
Luiz Felipe não sabia, mas tinha sido a primeira manifestação do tal núcleo neurótico.
O avião não caíra. Mas eles não voltaram vivos. O pai morrera de enfarte, no saguão do hotel em Paris e a mãe, quarenta e oito horas depois, no aeroporto, no Rio, ao desembarcar do avião que trazia o corpo do marido.
Durante os onze anos em que, com muitas interrupções, sentou-se no divã, porque sempre se recusara a deitar, os dezesseis psicólogos ou psicanalistas fizeram uma festa com o tema e Luiz Felipe nunca soube se estava sempre esperando o pior para não se decepcionar, ou se era, como sugerira a Dra. Elizabeth, um masoquista de carteirinha, sentindo prazer com o próprio sofrimento. E, se o sofrimento não existia, precisava desesperadamente ser inventado.
Não tinha conseguido prestar atenção nas conversas durante o almoço e só percebeu que estava acompanhado dos colegas, quando Guilherme, que passara a noite vendo o Discovery, estava terminando de contar a história da baleia malvada, que dilacerava o pescoço do leão marinho, sacudindo-o atabalhoadamente, quase tanto quanto Guilherme ao imitar o gesto, derrubando os copos sobre a mesa.
Luiz Felipe voltou ao escritório preocupado com as lembranças.
Afinal, estava vivendo uma fase muito boa de sua vida. Continuava sozinho, mas não se sentia solitário. Encontrava-se com Ana Maria que continuava insistindo em não ir ao seu apartamento, mas não hesitava em freqüentar os motéis de São Conrado, encontrava-se eventualmente com Marly, uma das Brigites do Balcão e, agora, parece que iniciava algo mais consistente com a Dra. Rosângela, a viúva dermatologista.
E havia Mercedes, que Luiz Felipe, sem saber exatamente porquê, estava considerando como muito especial, uma espécie de granfinale da ópera que, em sua delirante fantasia, estava compondo desde que se dera conta de que o enfarte ridículo e a estúpida depressão não tinham acabado com sua vida.
Não fazia, pois, nenhum sentido alimentar aquelas recordações a não ser que ele, realmente, fosse um sofredor compulsivo. Quem dissera esta bobagem ? Qual das psicólogas afirmara esta asneira ? Fora Elizabeth ou fora Luísa, a psicóloga-namorada ?
Luiz Felipe tinha que tomar uma decisão: jantar com Mercedes, que lhe apresentaria o relatório sobre o concurso das namoradas, ou com Rosângela, que parecia estar muito feliz por ter abandonado o luto. Pensou que acabaria dormindo outra vez com a viúva dermatologista... o que seria bom. Mas também queria encontrar-se com Mercedes, o que também seria bom.
Pediu, então, à secretária que confirmasse o jantar com Mercedes e que dissesse à Rosângela que estaria na casa dela por volta das onze da noite.
Um comentário:
Você devia mudar o título de seu livro para "O Favorito". Esse Luiz Felipe é dos bons. Em 17 capítulos já papou a Luisa, a Rosângela e, claro, vai papar a Mercedes...
Estou ansioso pelos próximos capítulos.
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