Para o Dr. Mauro Cardoso, a imaginação tinha se tornado realidade: estava criada a GLS Assistência 24 Horas, o primeiro e mais importante produto do Departamento de Marketing.
A empresa, fruto da associação da GLS com uma Seguradora francesa, tinha como objetivo prestar assistência, vinte e quatro horas por dia, todos os dias, aos segurados em dificuldades decorrentes de enguiço ou acidentes com seu veículo, e promover remoções médicas de pessoas doentes ou acidentadas. A proposta, além de ambiciosa, era inédita no Brasil e representava o início de uma nova concepção na atividade de seguros, mais um sinal do pioneirismo da GLS. Não fora uma gestação tranqüila. Houve tropeços, avanços e recuos, e muito ceticismo por parte de alguns membros da Diretoria, mas tudo foi inteiramente compensado pela beleza do recém nascido.
A GLS Assistência 24 Horas utilizava um moderno sistema de telefonia e de informática, e do quadragésimo andar da Torre, em Botafogo, eram acionados, tão logo o segurado solicitava através de um telefonema, reboques, mecânicos, ambulâncias, aviões-hospital, carros locados, táxis, e uma série de outros serviços para qualquer ponto do território brasileiro.
Graças ao domínio do francês, Luiz Felipe trabalhara desde o início no projeto, participando do grupo de trabalho que montara o produto, traduzindo os textos franceses e adaptando-os à realidade brasileira. Por isso, ele saíra da Matriz e estava agora ocupando o cargo de Superintendente de Gestão da GLS Assistência 24 horas, sob a chefia do Diretor Ernesto Fialho.
Era uma mudança promissora em sua carreira, uma atividade nova na empresa e no país e, mais do que isto, o princípio da cura da depressão, que, depois de um ano atormentando a sua vida, começou a dar sinais de que estava querendo ir embora.
A psicanalista não concordava com este enfoque e, defendendo sua profissão, ou tentando manter o cliente, afirmava que Luiz Felipe estava saindo da depressão graças ao esplêndido trabalho que estavam desenvolvendo, enfatizando que era um esforço conjunto.Talvez. Luiz Felipe acreditava que tinha sido muito importante a observação de que idealização era véspera de esculhambação, o que se encaixava nele como uma luva do tamanho certo, face a sua permanente mania de imaginar, idealizar acontecimentos e posições de pessoas, antes que ocorressem, e que, na maioria das vezes, sequer ocorriam. Era o famigerado núcleo neurótico, sempre tentando tomar conta de sua vida.
Isto ficou muito nítido quando, em uma das sessões, com seu nível de depressão lá nas alturas, ele desabafou, dizendo que estava cansado de brincar de casinha, fazendo o café de manhã e tendo que ir à lavanderia todos os sábados. Elizabeth foi bastante contundente:
- Você está sozinho porque quer. Tem medo de se casar, de repartir sua vida com outra pessoa. Você mesmo disse isso muito claramente. E sempre achou muito bom estar sozinho. Estar sozinho não é nenhuma aberração. Aberração é estar sozinho, sentir-se infeliz por estar sozinho e não fazer nada para alterar esta situação. Sua sensação de agora é por causa da depressão.
E, agora, a psicanalista estava creditando a melhora de Luiz Felipe ao seu trabalho:
- Você está se sentindo bem, ou, pelo menos, melhor, mas não é porque está numa nova posição na empresa, em um novo local, numa atividade nova. Se você ainda estivesse tão deprimido quanto estava quando começamos o nosso trabalho, ia estar achando horrível a mudança, ia sentir medo e ia detestar a Torre e fazer fantasias sobre suicídio quando olhasse pela janela do quadragésimo andar.
Exageros à parte, mesmo porque não havia janelas nas salas da Torre, foi uma das poucas vezes em que Luiz Felipe concordou com a psicanalista, uma das poucas vezes em que não achou que estava ouvindo um psicologuês idiota. Talvez, afinal, ele pensou, estivessem, mesmo, fazendo um bom trabalho.
Provavelmente, mesmo sem receber qualquer apoio químico, seus neurônios tivessem resolvido, de uma vez por todas, se entender, dialogar, enfim, restabelecer as saudáveis linhas de comunicação, interrompidas pelo enfartezinho de um ano atrás, o que foi muito bom, pois lhe permitiu participar com muita alegria, como não acontecia há muito tempo, do aniversário de cinqüenta anos de seu irmão.
Luiz Felipe ficou na dúvida se iria só ou se levaria Ana Maria, que conhecera na fila do cinema. Ela era dez anos mais moça do que ele, estava separada há três e tinha um filho de doze. Trabalhava como professora numa escola estadual mas faturava quase três vezes o valor de seu salário, como sacoleira, viajando diversas vezes por mês ao Paraguai ou, em tempos melhores, a Nova Iorque, trazendo coisas para vender.
Ana Maria tinha saído de um casamento complicado. O ex-marido, vinte e dois anos mais velho do que ela, era extremamente conservador, membro de diversas associações religiosas, uma pessoa cheia de manias e de tabus. Todas as vezes em que Ana Maria manifestou desejo de ir a um motel, porque sua grande amiga Mariana vivia dizendo que era muito bom para dar sangue novo ao casamento, ele vetava enfaticamente, dizendo que os motéis eram antros de pecados e que não eram lugares para serem freqüentados por casais que viviam em plenitude o santo sacramento do matrimônio. Ir a um motel, ele discursava, significava atrair a ira de Deus e ficar sujeito ao seu castigo implacável.
E foi o que realmente aconteceu. Uma madrugada de sexta-feira, Ana Maria foi chamada às pressas ao pronto socorro cardiológico do bairro. O marido enfartara em um quarto de motel, onde estava com uma jovem beata de sua congregação.
Quando ela conheceu Luiz Felipe, estava muito perturbada, vivendo uma euforia doentia e querendo recuperar em pouco tempo toda a liberdade que ela julgava ter perdido enquanto viveu com o santo marido, como era chamado pelos membros da comunidade. Por isso, no momento em que Luiz Felipe apenas insinuou que precisavam se conhecer melhor, ela logo perguntou em que motel ele a levaria.
Saíam pelo menos uma vez por semana e sempre conhecendo um motel diferente. Luiz Felipe jamais conseguiu levá-la ao seu apartamento, porque Ana Maria achava que seria constrangedor, se o filho soubesse...
Luiz Felipe considerava o relacionamento bastante confuso mas decidiu que não ia tentar modificá-lo. Afinal, pensou, sua namorada ainda devia estar muito traumatizada pela maneira como viu terminar o casamento. E decidiu também que não era a hora de aparecer com ela na festa de aniversário dos cinqüenta anos de seu irmão, nem o momento de exibi-la aos parentes e amigos.
Por isso, chegou sozinho ao salão de festas do condomínio onde o irmão morava.
Luiz Felipe encontrou Mercedes, com quem tivera, há muitos anos, um tumultuado início de namoro, que não chegou a lugar algum. Tinham freqüentado a mesma Faculdade, mas Mercedes era mais jovem, de uma turma mais nova. Ela se casara com um médico, com quem Luiz Felipe se entendeu muito bem. Tinham se tornado amigos, faziam muitos programas juntos. Mas, quando ela se separou, houve um afastamento, conseqüência, segundo a tese da própria Mercedes, da marginalização de que eram vítimas as mulheres separadas.
Luiz Felipe ficou contente ao revê-la, muito alegre, muito feliz, muito bonita, sem qualquer resquício do aparente abatimento que ele julgara ter percebido, logo depois de sua separação. Ela estava realmente de bem com a vida.
Quando comentou, sem estar falando sério, que estava pensando em casar, porque não agüentava mais ter de lavar roupa e fritar hambúrgueres, fugindo das fagulhas, nas noites em que a preguiça de sair de casa era maior do que o desejo de ir a um bom restaurante, Mercedes riu.
- O que você precisa é de uma empregada e não de uma mulher.
- Empregada, eu tenho. Acho que estou precisando é de uma mulher para fazer a empregada trabalhar...
Ele circulou pelo salão, comeu e bebeu mais do que devia, tentando se lembrar de que não tomaria o remédio para dormir naquela noite.
Às três da madrugada, estava em casa.
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