quinta-feira, 20 de novembro de 2008

As Gralhas Enfurecidas (015)



Sem sono, ligeiramente alcoolizado, pensou na declaração de Mercedes, segundo a qual, ele estava precisando de uma empregada e não de uma mulher... Teria aquela declaração sido uma tentativa de iniciar um discurso feminista ? Naquele momento, ele tinha se limitado a rir, e não fez qualquer comentário, mas, agora, sem prestar atenção ao filme na TV, Luiz Felipe lembrou-se da Rosali, uma das Brigites do Balcão, tentando mostrar aptidões de esposa, arrumando suas meias na gaveta, depois de ter lavado toda a louça. Ou será que ela estava se candidatando à vaga de empregada doméstica ?
No dia seguinte, de ressaca, tinha decidido não almoçar. Ana Maria apareceu no escritório dizendo que precisava falar com ele. Foram ao restaurante japonês e, entre um e outro pedaço de peixe cru, que Luiz Felipe fazia força para ignorar, ela disse que estava aborrecida por ele não a ter levado à festa de seu irmão, acrescentando que isto era um sinal de que ele queria apenas ficar nas pizzas do Sagres, nas feijoadas do Le Coin e, sobretudo, nos encontros semanais nos motéis da Barra da Tijuca. Ou seja, que ele só pensava em comer.
- Se eu não posso comparecer a festas da sua família, se você não quer me apresentar a seus amigos e parentes... Não sei o que estamos fazendo juntos.
O que ele não sabia é se aquilo era uma proposta de casamento ou de separação, o que também resolveu não perguntar. Os uísques, o champanha e a excitação da véspera, somados agora ao cheiro dos peixinhos quase vivos, quase se mexendo no prato de Ana Maria, não lhe davam condições de raciocinar, e o encontro estava sendo um retumbante fracasso, o que não estava afetando seu estado psicológico, o melhor dos últimos meses.
Elizabeth, com quem ele se encontrou naquela tarde, disse que estava muito contente, mas não quis lhe dar alta. Luiz Felipe perguntou-lhe se alguma vez já dera alta a alguém... e ela respondeu um “claro!” no qual ele não percebeu convicção alguma. Mesmo assim, despediu-se, disse que não continuaria e que, se sentisse necessidade, voltaria correndo.
Como boa psicóloga, Elizabeth discursou sobre despedidas e arrematou com o psicologuês do dia:
- Em todas as nossas sessões, você olhou para o relógio e deu a entrevista como encerrada, antes que eu o fizesse. Agora, você também está se antecipando. Em suma, você quer se despedir e não mais ser despedido. Certamente você está pensando na sua namorada que fugiu para Paris sem se despedir de você.
- Ora, Elizabeth... Luísa não fugiu e claro que se despediu de mim... Sabe, vocês psicólogas... acho, Elizabeth, que nós temos que repensar nossa relação...
Luiz Felipe decretou o fim do tratamento, mas não saiu totalmente tranqüilo, pelo menos com a absoluta certeza de que estava curado. Saiu com algum receio de que uma recaída pudesse acontecer na primeira esquina, tão logo surgisse algum contratempo que os tais elementos químicos interpretassem como sério e decidissem, uma vez mais, abandonar o trabalho, interrompendo ou perturbando as linhas de comunicação entre os neurônios.
O receio, talvez, fosse reflexo de uma incômoda ociosidade que estava presente nas recém iniciadas atividades da nova empresa. Os telefonemas dos segurados pedindo auxílio não estavam acontecendo com a freqüência estimada. No primeiro mês de operações, o computador anotou a média de um vírgula seis chamados por dia.
O assunto foi bastante debatido em uma reunião na qual o Dr. Mauro Cardoso, pai da assistência, explicou gongoricamente, como sempre, a teoria da comunicação e o posicionamento pró-ativo que se impunha à empresa, filosofando compulsivamente, como também sempre fazia, sobre o que tinha sido sua leitura da noite anterior.
Às três da tarde, as teorias mirabolantes do Dr. Mauro foram derrotadas pelo pragmatismo do Diretor de Operações, e concluiu-se que, se o sistema estava bem montado, a rede de prestadores de serviços devidamente cadastrada e pronta para ser acionada e se, como era de se esperar, os segurados continuavam tendo acidentes e seus veículos continuavam enguiçando, a ausência de ligações devia-se ao fato de que não conheciam o produto, ou o conheciam erradamente. Ou seja: falta de divulgação, ou divulgação equivocada.
Diagnosticada a doença, a receita foi prescrita imediatamente e coube a Luiz Felipe arrumar as malas e partir para as Sucursais da GLS para divulgar o fabuloso produto com que a empresa se preparava para entrar no século vinte e um.
Ele era, oficialmente, o garoto propaganda da Assistência 24 Horas. Um garoto que estava a alguns meses de completar o seu cinqüentenário.
Em uma dessas viagens, ao voltar de Recife, viu Mercedes no aeroporto e ela, desvencilhando-se da amiga que partia para a Europa, correu em sua direção, dizendo-lhe que ia lhe telefonar naquele dia para convidá-lo para assistir a uma conferência de um amigo. Qualquer coisa parecida com pergaminhos encontrados no Mar Morto.
Luiz Felipe disse que não perderia aquela conferência em hipótese alguma e que tinha certeza de que sua vida jamais seria a mesma depois de conhecer os tais pergaminhos. Mercedes riu, mas insistiu no convite e ele mentiu, dizendo que ia pensar.
Despediram-se, Mercedes voltou ao encontro da amiga e Luiz Felipe entrou no táxi e foi para casa.
O segundo convite, quatro dias depois, foi para uma festa de aniversário de uma colega. Luiz Felipe aceitou e, pela primeira vez desde a auto-decretação do fim da depressão, aparecia em público, participando de encontros sociais, e acompanhado por uma advogada.
Conheceu alguns colegas do escritório onde Mercedes trabalhava, ouviu estatísticas alarmantes sobre o funcionamento da Justiça no país, discutiu, sem saber do que estava falando, sobre os Tribunais de Alçada na Inglaterra e foi assediado por um jovem professor de História Egípcia, certamente um estranho no ninho, usando suspensórios e uma ridícula gravata borboleta, que o convidou para conhecer uma coleção de reproduções de hieróglifos, em seu apartamento.

(foto: noite de autógrafos, set. 1999)

Um comentário:

Anônimo disse...

É claro que Luiz Felipe é você. "Você" trabalha numa empresa que se chama GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes).Acho que você é gay e que vai transar no próximo capítulo com o professor de história egipcia. Faça como eu, Luiz Felipe, saia do armário. Espero que você não censure meu comentário.