terça-feira, 25 de novembro de 2008

As Gralhas Enfurecidas (016)

Mais tarde, bem mais tarde, deixou em casa uma Mercedes que, cambaleante, subiu os degraus da entrada de seu prédio. Luiz Felipe voltou para casa com a certeza de que as reuniões sociais de pessoas da mesma atividade profissional eram, realmente, muito chatas.
Os encontros passaram a ser freqüentes. Ficavam horas conversando, trocavam idéias sobre tudo e sobre todos, ele falava de seu trabalho, ela contava suas dificuldades, como mulher, no exercício de sua profissão, iam a exposições, noites de autógrafos, cinemas, teatros, restaurantes e bares da moda.
Era uma amizade absolutamente em preto e branco, sem qualquer primeira, segunda ou terceira intenção. Simplesmente dois amigos, sozinhos, mas não solitários, conversando sobre os mais diversos temas, uma terapia agradável, sem a incômoda presença do psicanalista, sem hora para começar ou terminar, sem o compromisso de voltar na próxima semana e com uma conta bem mais razoável para pagar.
Um dia, Luiz Felipe a convidou para jantar, porque queria lhe apresentar duas pessoas que conhecera em um coquetel. Estava pensando em namorar uma das duas e queria que ela o ajudasse a escolher... Quando desligou o telefone, ficou na dúvida se a depressão tinha sido substituída por alguma outra doença mental mais séria.
As duas candidatas ao namoro estavam sentadas, bebendo caipirinhas. Da porta do restaurante, Luiz Felipe viu que havia mais uma mulher à mesa.
Foram feitas as apresentações: as candidatas Lúcia, professora de Química, separada há um ano, com dois filhos; Regina, psicanalista, separada há quatro anos, com uma filha; a terceira, penetra do banquete, Rosângela, médica dermatologista, viúva, sem filhos. Luiz Felipe achou que a dermatologista, apesar de mais velha, era parecida com Ana Maria.
A psicanalista estava tratando de um senhor que perdera a mulher e a filha em um desastre de avião, mas que estava indo bem, obrigado, superando a dor, contornando com rara felicidade o estresse pós-traumático.
A professora de química era muito amiga da psicanalista, e, por isso mesmo, lamentavelmente, não podia ser sua cliente, mas bem que precisava porque não estava sendo nada fácil aceitar que seu marido a tivesse largado para ir viver com o primo dela, mas não explicou porque não fazia análise com outra pessoa.
A dermatologista perdera o marido em um acidente de motocicleta e, como gostava muito da sogra, e não queria magoá-la, decidiu esperar o período de doze meses de luto para voltar à luta. Mas, Deus!, como estava sendo difícil. Não, não era de análise que ela precisava.
Luiz Felipe e Mercedes ficaram calados a maior parte do tempo. Estavam se lembrando do anúncio dos biscoitos na TV e não sabiam se tinham falado pouco porque as outras falaram demais, ou se as outras falaram demais porque eles falaram pouco.
Quando saíram, chovia muito. A psicanalista deu carona para a professora de química e Mercedes, que moravam na mesma rua. Luiz Felipe levou a dermatologista até Copacabana.
Trafegando por ruas alagadas, levaram mais de uma hora para o percurso de quatro quilômetros. Quando chegaram, ela o convidou para um café, sugerindo que seria melhor esperar a chuva diminuir para ele seguir até Botafogo.
Luiz Felipe perguntou-lhe há quanto tempo o marido morrera e ela informou que há sete meses e vinte e três dias.
Luiz Felipe concluiu que podia aceitar o café e subiu.
Chegou em casa às sete da manhã. A luz vermelha da secretária eletrônica piscava sem parar. Havia muitos recados, mas ele adiantou a fita e ouviu o de Mercedes:
- São três da manhã... Onde é que você está ? Liga para mim...
Luiz Felipe olhou para o relógio e concluiu que não devia ligar, pensando no que iria dizer. Depois, riu, surpreso por não ter percebido que não tinha compromisso algum com Mercedes e que não precisava inventar qualquer desculpa por ter passado a noite no apartamento da dermatologista.
Não havia tempo para dormir, em menos de duas horas deveria estar no escritório para mais uma reunião com o Diretor de Operações e o Diretor de Marketing. Seria difícil não cochilar quando o Dr. Mauro Cardoso começasse a discursar seus temas favoritos, e ele teria que, uma vez mais, responder que não, certamente não beberia um refrigerante que se chamasse Xerox e que em hipótese alguma tiraria uma cópia numa máquina de Coca-Cola.
Debaixo do chuveiro, lembrou-se de seu encontro com a dermatologista e de como fora brilhante ao convencê-la de que o luto, naqueles casos, era de seis meses e não de um ano e de que como fora absolutamente perspicaz ao fundamentar sua opinião com textos do Antigo Testamento, que ele nunca lera. Mas, quando já estava chegando ao escritório, mudou de opinião e estava absolutamente convencido de que sua companheira não acreditara naquela história idiota e que, pelo seu desempenho sexual, não parecia estar de luto há tanto tempo assim.
Chegou ao escritório e recebeu a informação de que a reunião fora cancelada. Deus é Pai, pensou. A secretária passou-lhe os recados:
- Ligaram a Dona Mercedes e a sua dermatologista.
- Ligue para a Dona Mercedes primeiro.
A secretária não saiu da sala:
- E a Dra. Rosângela ?
- Quem é a Dra. Rosângela ?
- A dermatologista. Se o senhor tinha alguma consulta marcada, não fui eu quem marcou.
Mercedes não podia almoçar, mas aceitaria jantar para apresentar seu relatório sobre a noite anterior e já queria adiantar que as candidatas ao namoro não tinham sido aprovadas. Antes de desligar, Mercedes não resistiu e perguntou onde Luiz Felipe estivera até as três da madrugada.
- Engarrafado, engarrafado e quase inundado em Copacabana...

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