domingo, 9 de novembro de 2008

As Gralhas Enfurecidas (012) - Roberto Argento

Aí, aconteceu.
A tensão provocada pela incerteza da manutenção do emprego fez o seu estrago: enfartou. Sem dor no peito, sem espalhafato, sem efeitos especiais, discretamente, britanicamente. Às três da tarde, sentiu um ligeiro incômodo, que atribuiu às costeletas de porco do almoço. Mas o incômodo mudou de lugar e começou a descer pelo lado interno do braço esquerdo. Luiz Felipe lembrou-se do amigo Flávio, que enfartara há um ano, e descrevera os mesmos sintomas.
E lembrou-se, também, de seus pais, morrendo de enfarte, quase no mesmo dia, dezesseis anos antes. Assustado, e ciente da importância da herança genética nos acidentes cardíacos, ignorou as observações dos colegas, dispensou o sal de frutas oferecido pela secretária, pegou o metrô, desceu em Botafogo e entrou no consultório do Dr. Ivanor, seu clínico geral há quinze anos.
Ainda esperou uma hora. Não havia marcado consulta e o consultório estava cheio. Enfim, o médico mandou que ele entrasse.
- Sua pressão está normal, mas você está suando muito. Vai até o Procardíaco e me telefona.
Luiz Felipe entrou no Hospital e foi atendido alguns minutos depois. Certamente, pensou, não poderia ser um enfarte, porque não houvera correria, não estava sendo atendido na emergência, não havia choques elétricos, nem massagens cardíacas, nada, enfim, parecido com as aventuras fantásticas do “Plantão Médico” a que assistia sempre na TV.
Estranhamente, seu núcleo neurótico não tinha se manifestado.
O médico fez um eletro e enquanto a tira de papel ia saindo da máquina, perguntou-lhe mais de uma vez se ele estava sentindo alguma dor. Luiz Felipe disse que não.
Saiu, mas voltou logo, acompanhado por uma enfermeira. Luiz Felipe percebeu que algo não ia bem, mas ainda se recusava a acreditar que estivesse sofrendo um enfarte, porque, repetia, não estava sentindo absolutamente nada.
Finalmente, o médico informou:
- O senhor está fazendo um enfarte.
Para ele, até aquele momento, as pessoas tinham enfarte, sofriam enfarte, eram acometidas de enfarte. Ele não sabia que pessoas faziam enfartes e pensou em pedir desculpas ao médico, por estar fazendo aquilo, ali, na sua sala. Continuava a não acreditar no que estava ouvindo, insistindo em que não estava sentindo dor alguma.
A enfermeira mediu a pressão, colocou um comprimido em sua boca, e transferiu-o para o que chamavam de Unidade Intermediária, onde grudaram uma porção de fios em seu peito. Acima da cabeceira da cama, um vídeo registrava os batimentos cardíacos, emitindo um irritante bip-bip que acompanhava os tracinhos que subiam e desciam, num balé sem qualquer criatividade.
Ele estava vivo.
Mais tarde, apareceram o Dr. Ivanor e o Dr. Ulisses, Cardiologista Chefe do Hospital. Haviam examinado o eletro. A pequena alteração registrada podia não ser um enfarte, mas uma esofagite. O exame das enzimas, nas vinte e quatro horas seguintes, determinaria o diagnóstico.
- Por enquanto você fica quieto, não saia da cama para nada. Amanhã de manhã eu volto. Você quer que eu avise a alguém ?
- Bem, se eu morrer... telefona para meu irmão. O Dr. Ivanor tem o número.
Luiz Felipe dormiu bem, apesar de ter sido despertado duas vezes por vampiros que lhe tiraram sangue. Ao acordar, desligou os fios do peito e foi ao banheiro para a rotina matinal. Em alguns segundos, dois enfermeiros, muito assustados, entraram no quarto. Ao desligar os fios, Luiz Felipe desconectara o terminal na sala dos médicos, os tracinhos se transformaram em uma linha horizontal, o bib-bip cessara...
Ele estava morto.
E os enfermeiros não encontraram sobre a cama o cadáver que, tranqüilamente, sentado no vaso, lia uma revista de história em quadrinhos.
O Dr. Ulisses apareceu e confirmou o enfarte, que classificou como leve. Atendendo a insistentes pedidos, permitiu que ele saísse da cama para ir ao banheiro, uma só vez por dia.
- Mas chame a enfermeira para desligar os fios.
Trinta dias depois, foi para casa, quatro quilos mais magro, sem fumar e com uma enorme vontade de morrer, que atribuiu à ausência do cigarro.
Voltou ao cardiologista e contou sua ansiedade.
- Não tem nada a ver com o cigarro. Você está deprimido, o que é muito comum. Mais de noventa e cinco por cento das pessoas que têm enfarte, ficam deprimidas, mas isto passa em alguns meses. Depressão é uma coisa complicada... um cientista americano disse que o homem conhece muito mais sobre a superfície lunar do que sobre o funcionamento do cérebro. Fique tranqüilo, seu enfarte foi muito leve, numa zona pouco importante do coração. O importante é não fumar.
Ele não estava preocupado com o enfarte, já tinha acontecido, nem com o cigarro, já tinha parado outras vezes, sem ter enlouquecido. O que o preocupava era aquela sensação de vazio, aquele desespero sem razão de ser, enfim, aquilo a que o médico estava chamando de depressão.
- Passa. Em alguns meses, passa. Você vai ver, um dia acorda e descobre que passou...
Assustou-o a declaração do médico. Afinal, como o Cardiologista Chefe do Hospital, lidando diariamente com recém-enfartados, dos quais, ele mesmo disse, noventa e cinco por cento entravam em depressão, não tinha nada a receitar, tratamento algum a indicar ? O único comentário que podia fazer era sobre a superfície lunar ?
Passa em alguns meses. Em quantos meses ? Em quantas luas ?
Decidiu, então, consultar um psiquiatra.
- O que se sabe, hoje, com razoável certeza, é que alguns tipos de depressão têm como causa a deficiência de elementos químicos, responsáveis pela comunicação entre os neurônios. Esta deficiência, aparentemente, tem como causa problemas psicológicos, como, por exemplo, o estado pós-enfarte, em função do susto, do medo da morte, do período de hospitalização. Doentes que ficam hospitalizados por muito tempo, mesmo sem ser por problemas cardíacos, também são sujeitos à depressão. Ou seja, um problema psicológico provoca déficit dos elementos químicos e o déficit causa a depressão. Então, o tratamento deve ser químico, através de remédios que suprem a deficiência.
Razoável certeza... aparentemente...
Saiu com uma receita de Tofranil e, como ficava muito bem num deprimido, com a certeza absoluta de que não ia adiantar coisa alguma. Na rua, passava um caminhão de lixo e Luiz Felipe lembrou-se de Woody Allen, dizendo que “você percebe que está deprimido quando vê um caminhão de lixo e grita táxi !"
No terceiro dia, o remédio começou a fazer efeito, mas o efeito colateral: ele estava com a boca absurdamente seca. Mal podia falar.
A depressão estava muito bem, cada vez mais forte.

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