quinta-feira, 29 de março de 2012

A Carta - Millôr Fernandes



Este blog, no dia em que o suicídio do presidente Getúlio Vargas completou 50 anos (24/8/2004), fez de conta que existia naquele dia trágico (parte 1 e parte 2)
Durante 24 horas. acompanhou as últimas horas de vida de um presidente encurrulado, seu gesto de dar um tiro no peito e a convulsão que tomou conta do país em seguida.
Várias pessoas contribuíram para resgatar a memória daquele dia. Uma delas, Millôr Fernandes. Só que ele preferiu escrever um conto, abaixo republicado.
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"No escuro da madrugada o telefone toca sem cessar. Atendo, apreensivo, como sói.
E’ Gilda: ”Pelo amor de Deus, vem cá.”
“Agora?.São quatro da manhã!”.
“Agora, pelo amor de Deus!” A voz é desesperada.
Gilda mora também aqui em Ipanema. Quatro quadras adiante.Vou correndo (sou um atleta das quantas). Ainda correndo subo as escadas: o edifício de Gilda não tem elevador.
Gilda deixou a porta entreaberta. Está jogada no sofá.
Beijo-a, protetor:
“Que foi, meu bem? “
Com expressão abandonada ela estira o braço e me entrega o envelope elegante, junto com uma folha de papel timbrado: "Presidência da República".
“Chegou há meia hora”.
Leio a carta:
“Gilda, antes que as forças me desfaleçam, decido com bravura o meu destino. O resto suportaria com denodo - teu abandono é o que me fere de maneira insuportável. Quando mais precisava, tu foges de mim. Tenho resistido, dia a dia, hora a hora, no desespero deste amor tardio, mas é tudo inútil. Sem teu amparo, renuncio a mim mesmo. Se nada mais me queres dar, te dou o meu sangue, te ofereço, em holocausto, a minha vida. Escolho este gesto para estar sempre contigo.
Meu sacrifício só você saberá que foi por amor, não pelo poder. Meu sangue será uma chama imortal em tua consciência, e me manterá para sempre em tua memória e em teu coração.
Ao teu abandono respondo com o perdão. Era escravo do teu amor, e escravo parto para a vida eterna.  Serenamente dou um passo saindo da vida, enquanto a morte entra em nossa história.“
Antes que eu acabe de ler a última linha, o telefone toca. Gilda atende: “Alô? Está!.”
Sem dizer nada, me passa o telefone. Era o Nasser: “Preciso de você aqui na redação. O Getúlio se suicidou.”
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Nasser era David Nasser, jornalista, diretor da revista O Cruzeiro, onde Millôr trabalhava quando Getúlio se matou. A carta que Gilda recebeu é uma versão amorosa da carta que Getúlio deixou para explicar seu suicídio.

2 comentários:

Jorge Eduardo disse...

Ter sido contemporâneo do Millor, um gênio universal,foi uma felicidade.

Alberto disse...

O Milor, além de amar a vida, teria sido um presidente muito melhor.