Ontem assisti ao belo filme de imagens e sons de Nelson Pereira dos Santos e Dora Jobim: A música segundo Tom Jobim. Um filme documentário usando o sensível, o sensorial entremeado de imagens e canções do maestro. Jobim, perto de Heitor Vila-Lobos, sem dúvida alguma foi e é um dos maiores compositores e arranjadores da música popular brasileira. Sua genialidade vai até ao sinfônico, com composições como a Sinfonia da Alvorada e arranjos interpretados por orquestras de todo o mundo.
Antonio Carlos Jobim trouxe à composição musical, influencias de gênios como Vila- Lobos, Stravinsky, Claude Debussy e toda uma música de sons da fauna brasileira e da “terra brasilis”. Jobim soube ser romântico, moderno e irreverente, mostrando acordes dissonantes, melodias de cores belíssimas e letras de cunho poético, filosófico e político.
O filme, um documentário sem palavras, onde a linguagem desliza em suas composições, mostrando intérpretes do meio musical, nacional e internacional, além de cenários de um Rio de Janeiro dos “bondes”, da Copacabana dos meados do século vinte e da Ipanema de sua “Garota”. A saudade traz a lembrança, na rememoração de um país dos festivais, de uma nação bucólica e romântica longe da loucura dos dias atuais. Saudade de Nara Leão, de Elis, do Agostinho dos Santos e de uma época onde as relações amorosas ultrapassavam o “ficar atual”. Beleza de letras, descrição poética do Orfeu do Carnaval e da dissonância de acordes que mostram a mata, os campos, os pássaros , o Rio de Janeiro sempre lindo e o amor.
“Sem você”, interpretado por Nana Caymmi foi capaz de tirar minhas lágrimas na saudade do Maestro. Aquele homem de terno de linho e chapéu de panamá tinha o carisma do amor, da sensibilidade poética e da precocidade de defender a Natureza.
Durante o filme ouvi risos, sussurros e pessoas enxugando um choro de saudade e respeito, por um Jobim que universalizou nossa música popular brasileira. Uma época em que a vida era mais bela, simples, afetiva e sem a violência do consumismo e da falta de ética.
Pena que a platéia era, pelo menos nesse dia, composta pela“terceira idade”. Espero que os jovens de hoje assistam essa beleza de filme! Um momento de riqueza da nossa cultura, um tempo de virada política que a música mostra, e que a obra de Nelson Pereira e Dora Jobim é capaz de pinçar o olhar ensimesmado de um Chico Buarque em êxtase perto do maestro Jobim. É um momento de intuição e revelação de um momento político, cantando a necessidade de uma nação democrática. Belo momento!
Outro momento lindo e expressivo é o duo de Jobim com Elis Regina interpretando “Águas de março”. Nota-se ali a leveza, a cumplicidade, a paixão e o swing dos dois. Elis, o “brilhante”, com sua voz e sorriso fantásticos canta e acompanha o maestro, comungando uma parceria divina. Jobim, solto, leve, livre, dançando e acompanhando seu ritmo de uma forma jovem e descontraída. Aliás , “Águas de março” é o samba mais bonito do mundo na expressão de Lorenzo Mammí, Arthur Nestrovski e Luiz Tatit em seu belo livro, Três Canções de Tom Jobim, Ed.Cosacnaif,2004.
Dizem os autores: “Cada uma das três dimensões – universalista (a experiência é de todos, não particular), naturalista (as referencias vem do que há de mais concreto e permanente da Terra) e a apropriativa (tudo pode entrar no caldo rico da música) – pede comentários.” Transcrevo parte da letra dessa música, letra de uma dimensão dialética, naturalista, filosófica, onde “os contrários encontram-se num balanço afetivo que mereceria o adjetivo “shakesperiano” segundo os autores citados acima.
“É pau, é pedra, é o fim do caminho/ É um resto de toco, é um pouco sozinho/É um caco de vidro, é a vida, é o sol/É a noite, é a morte, é o laço, é o anzol/É peroba do campo, é o nó da madeira/Caingá, candeia, é o matita pereira. É madeira de vento, tombo da ribanceira/É o mistério profundo, é o queira ou não queira/É o vento ventando, é o fim da ladeira/È a viga, é o vão, festa da cumeeira/É a chuva chovendo, é conversa ribeira/Das águas de março, é o fim da canseira.”
Lembra os textos de Guimarães Rosa, lembra a vida tal como ela é, lembra o ser e não ser, recorda a existência humana no conflito dos contrários, na beleza dos opostos, na vida – essa caminhada tortuosa num sem fim, senão na morte. E por falar em morte, deixo com o leitor uma máxima do Rosa, o Guimarães: “ as pessoas não morrem, ficam encantadas”. Saravá Tom Jobim!
Carlos A. Vieira, médico, psicanalista da Soc. de Psicanálise de Brasilia e membro da FEBRAPSI-IPA-London.