Gabriel Garcia Marques em seu livro O Amor nos Tempos do Cólera escreveu que experiência é algo que se adquire quando não se precisa mais dela. Quem sou eu para discordar do Nobel colombiano ? Mas, discordo.
Casei com 23 anos de idade, estava no quarto ano da Faculdade de Direito da PUC e minha mulher tinha acabado de passar em um concurso público para professora estadual em primeiro lugar. Possuía uma carteira da Ordem dos Advogados do Brasil que me dava o título de “solicitador”, podendo exercer alguns procedimentos jurídicos.
Freqüentava a Faculdade de manhã e, à tarde, lecionava português no curso primário do Colégio Santo Agostinho, onde eu fora aluno por nove anos. No ano seguinte, o último da Faculdade, fui eleito orador da turma, larguei o Colégio e fui trabalhar, como estagiário, em um importante Escritório de Advocacia no Rio de Janeiro.
Julgava-me um gênio... Um gênio incapaz de manter boas relações com os pais e os sogros. O pai de minha mulher era General Revolucionário (Lembram ? O golpe militar de 1964) e foi transferido para São Paulo. Fomos morar no apartamento deles que ficava no terceiro andar, embaixo do apartamento onde moravam meus pais. Perto, perto demais para um casal que iniciava sua vida a dois.
Meus sogros vinham ao Rio duas vezes por mês e, quando nasceu nosso primeiro filho, passaram a vir três ou quatro. O General Revolucionário – General, revolucionário e gaúcho - e meu pai – pai de filho único – pensavam de maneira totalmente oposta.
Quando o nosso bebê com alguns meses berrava no berço, o General vociferava:
- Vocês –“vocês” éramos nós, os pais do bebê – estão estragando este menino, vivem com ele no colo.
Meu pai contra atacava:
- Vocês não dão carinho ao menino. É uma crueldade deixá-lo chorando no berço. Carinho nunca fez mal a ninguém.
Eu e minha mulher, em vez de argumentarmos, ou mesmo sermos mais incisivos, pedindo que nos deixassem livres quanto ao modo de criar nosso filho – aquela frase célebre – “não dê palpites, sei errar sozinho” – ficávamos calados e irritados.
Quando eles iam embora, brigávamos:
- Você viu o que seu pai falou ?
- É ? E você ouviu o que sua mãe disse ?
Em uma tarde de sábado estavam na minha casa meus pais, minha tia, meus sogros, e a mãe de minha sogra. Falavam sem parar. Nosso filho, no berço, não parava de chorar e a velharia não parava de palpitar... Decidi chamar o pediatra. Chegou em quarenta minutos, viu aquela turma toda na sala, disse um “boa tarde” que veio acompanhado por um sorriso tipo Monalisa, como quem já tivesse o diagnóstico antes mesmo de examinar o bebê.
Fomos para o quarto, fechei a porta e tranquei-a. O médico examinou a garganta, os ouvidos, ouviu os pulmões, mediu a temperatura.
Eu perguntei:
- E aí, Doutor, o quê ele tem?
O pediatra sorriu:
- Avô e avó demais. Imagino que ele passou de colo em colo... Ou seja, ele não tem doença alguma. Mas está excitadíssimo. Vou receitar um calmante, você dá quinze gotas e me telefona às dez horas para dar notícias.
E acrescentou:
- Agora... o mais importante... você ou sua mulher ficam aqui com ele, segurem no colo e não deixem ninguém entrar. Ele vai acalmar.
Minha mulher ficou no quarto, acompanhei o médico até o elevador e voltei para a sala.
As gralhas enfurecidas desceram das árvores:
- Achei este doutor muito moço, não pode ter nenhuma experiência.
- É verdade, vocês deviam ter um pediatra mais velho, mais experiente.
- O que ele receitou ?
- Se eu fosse vocês dava só cinco gotas.
- Pois é, nunca vi dar calmante para bebês.
As gralhas estavam cada vez mais enfurecidas por causa de meu silêncio e porque não as deixei entrar no quarto para se despedir do bebê. Aí, alçaram vôo e partiram, como as pombas do Raimundo Correa.
Três horas depois o bebê estava calmo, dormindo tranqüilamente. Efeito do remédio, provavelmente e da ausência das gralhas, certamente.
Excitados estávamos eu e minha mulher. Para variar, brigamos, ela acusando meus pais e minha tia, eu acusando os pais dela e sua avó.
Não éramos gênios. Éramos, de fato, dois idiotas.
Vinte e cinco anos depois eu estava com uma segunda mulher e, como minha nova sogra, eu também tinha netos, genros e noras. E tinha adquirido a tal da experiência e precisava muito dela para lidar com a nova situação.
Em uma manhã ensolarada de sábado, estávamos na piscina da casa de um primo da minha segunda mulher. A conversa estava chatíssima. Havia um parente distante da minha sogra, beirando os setenta anos que não parava de falar. Falava tanto, tanto que, diziam, foi à praia e voltou com a língua bronzeada. Aí o ancião passou a falar sobre doenças e, solenemente informou que era diabético.
Pronto – pensei – agora a vaca vai para o brejo, esse coroa entrou no assunto preferido de minha sogra e logo adivinhei o que ela ia falar.
Não deu outra:
- A Maria Helena nunca foi diabética. Juntou com o Roberto e ficou diabética.
Há vinte e cinco anos atrás, eu teria brigado com minha mulher, acusando-a de algo com o qual ela não tinha nada a ver. Mas, agora, com a experiência adquirida, com meus cinqüenta anos nas costas, não fiquei calado nem fui agressivo. Pensei uma vez e meia antes de responder, apliquei a regra do perco a sogra e a mulher, mas não perco a piada e falei:
- Claro, Dona Esmeralda. Mas sabe por quê ? Porque meu esperma é doce, tão doce quanto os lábios de Iracema, a Virgem dos Lábios de Mel.
E acrescentei em um tom ligeiramente arrogante:
- Para quem não sabe, isto é de José de Alencar.
A partir daquele dia, as gralhas familiares passaram a me considerar muito criativo, muito rápido nas observações e muito culto. E também muito metido. E eu nem sabia se a Iracema era a namoradinha do José de Alencar ou do Gonçalves Dias.
Desculpe, Senhor Gabriel Garcia Marques, mas a experiência não é adquirida quando não se precisa mais dela. Ela é adquirida durante toda a vida e usada exatamente quando mais se precisa.
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